O concerto que Brahms não escreveu e o Villa-Lobos guru da MPB

por João Marcos Coelho 29/10/2019

Uma das gravações recentes que mais me chamaram a atenção foi “Belle Époque”, da clarinetista belga Annélien van Wauwe, de 32 anos. Primeiro pela inteligência do repertório, mesmo revisitando os compositores mais vistosos daquele período dourado da música francesa, nas décadas finais do século XIX. 

Como, por exemplo, a Primeira rapsódia de Debussy, que nasceu como peça de confronto do concurso do Conservatório de Paris para clarinete e piano, em 1909, e dois anos depois mereceu uma versão do compositor para clarinete e orquestra. E também duas outras peças curtas, a divertida Canzonetta, de 1907, de Gabriel Pierné (1865-1937), compositor e também maestro que estreou O pássaro de fogo de Stravinsky, Images de Debussy e Daphne et Chloé de Ravel; e Introduction et Rondo, opus 72, de Charles-Marie Widor (1844-1937), ambas em arranjos de Jelle Tassyns para clarinete e orquestra. Há ainda uma primeira gravação mundial, da Rapsódia para clarinete e orquestra, de 2002, do compositor alemão Manfred Trojahn, de 70 anos. 

Annélien van Wauwe [Divulgação]
Annélien van Wauwe [Divulgação]

Mas a obra que mais me chamou a atenção neste primoroso CD do selo Pentatone foi um arranjo da famosa Sonata para clarinete e piano em fá menor, opus 120, de Johannes Brahms (1833-1897). Acontece que o sempre maravilhosamente inquieto compositor italiano Luciano Berio (1926-2003) leu uma carta de Brahms ao clarinetista Richard Mühlfeld. A musicalidade deste último levou o compositor, então já se considerando aposentado, em 1891, a retornar à criação com quatro obras-primas outonais envolvendo o clarinete: o trio em lá menor, opus 114, o quinteto em si menor opus 115 e as duas sonatas opus 120. 

Berio levou a sério o trecho da carta em que Brahms escreve: “Não fui impetuoso a ponto de escrever um concerto para clarinete para você! Mas, se tudo correr bem, você terá ao menos duas modestas sonatas com piano!!!???” Assim mesmo, com três pontos de exclamação e três de interrogação.  O italiano, autor de obras-primas do século XX como a Sinfonia e a incrível série de Sequenzas para instrumentos solo, demonstrava sua paixão por outros compositores fazendo arranjos de obras. Chamava a este trabalho de “ricomposizione”, como Rendering, escrita a partir dos fragmentos deixados por Schubert do que seria sua décima sinfonia. 

E, já que amava a sonata em fá menor, Berio só assumiu a liberdade de expandir os quatro compassos iniciais do primeiro movimento, um Allegro appassionato; e também escreveu uma introdução para o segundo movimento, um emocionante Andante un poco adagio. A obra resultou de encomenda da Associação da Filarmônica de Los Angeles e estreou em 6 de novembro de 1986. 

 

A orquestra que a acompanha não é nenhuma daquelas vistosas, que ocupam grandes espaços na mídia especializada internacional. Mas é gratificante sair do comportamento automático de ouvir sempre os mesmos afamados intérpretes. Garimpar gemas como esta gravação é um dos maiores prazeres de quem gosta de música como alimento espiritual de seu dia-a-dia. Annélien não fica nada a dever a outros clarinetistas mais conhecidos; e Alexandre Bloch rege com segurança os competentes músicos da Orquestra Nacional de Lille.

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Acabei de receber o livro Villa-Lobos e a música popular brasileira: uma visão sem preconceito, de Ermelinda A. Paz, numa como sempre bem cuidada edição da Tipografia Musical de Bruno D’Abruzzo e Roberto Votta. O livro foi publicado originalmente em 2004. Uma leitura obrigatória para todos os que se interessam em ampliar a imagem consagrada de Villa-Lobos.

Ermelinda vai fundo nas relações históricas entre o compositor e grandes nomes da música popular brasileira, como Sinhô, Pixinguinha, Donga, Cartola, Dorival Caymmi e Tom Jobim. Mas – e este talvez seja o diferencial do livro –, ela entrevistou ou garimpou em depoimentos gravados de músicos como Edu Lobo, Wagner Tiso e Egberto Gismonti (um de seus discípulos mais consistentes).

Depoimentos como este, de Edu Lobo: “Para mim, Villa-Lobos é um músico popular muito sofisticado, como Prokofiev e até mesmo Stravinsky. Um leigo em música canta a música dele. A melodia é direta, clara, linda, sobre um contraponto da mais alta categoria. Por essa razão a França (Europa) aplaudiu de pé a América. Fez menos sucesso no Brasil, mas isto já é de se esperar. Aliás, acho uma vergonha enorme, porque tudo que consegui dele de música (partituras) e gravações, tive que comprar lá fora. O Brasil cuida mal dos seus brasileiros”.

Ao menos neste caso – o depoimento de Edu Lobo é de 1987 –, a situação felizmente mudou para melhor. Hoje temos, por exemplo, as edições críticas de todas as sinfonias e já é possível qualquer orquestra do planeta tocá-las corretamente (e não naquelas versões mal ajambradas, porque baseadas em manuscritos cheios de erros, da Orquestra de Stuttgart para o selo CPO).  

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Por falar em partituras, Bruno D’Abruzzo e Roberto Votta vêm realizando na Tipografia Musical um trabalho importante de edição não só de livros de estudos musicais como também publicando partituras, como, neste mesmo ano, os dois álbuns de canções e peças para piano assinadas por Francisco Mignone com seu pseudônimo “popular”: Chico Bororó. 

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