Ópera em Buenos Aires

por Nelson Rubens Kunze 09/12/2019

Apesar do esforço e do engajamento de uma legião de gestores, diretores, maestros e cantores brasileiros, empenhados em tocar adiante a vida musical lírica no país, ainda temos muita luta e um longo caminho pela frente. Pensei nisso após assistir a Os contos de Hoffmann, no Teatro Colón, em Buenos Aires. A montagem tem uma ambição artística e de produção como há anos não se vê por aqui.

Não é surpresa para ninguém que o Teatro Colón é desde sempre o grande centro lírico da América do Sul. Faça chuva ou faça sol, a centenária casa, com sua acústica privilegiada, mantém uma programação de tirar o fôlego e atrai grandes estrelas da cena internacional (veja um sumário da temporada 2020 abaixo). Como? Com investimento público, identificação com a comunidade e profissionais especializados. Não há ali nenhum incômodo em levar o gênero ópera a sério, como manifestação artística legítima, viva, que inquire nossa realidade e perscrute os mistérios da nossa existência. Elitista? Bom... cabe a nós tornar acessível e bem comum um dos mais ricos patrimônios da cultura ocidental e, por extensão, de toda humanidade.

Seja como for, o Teatro Colón esteve abarrotado de gente (são 2500 lugares, quase dois Municipais de São Paulo!) na última quarta-feira, dia 4 de dezembro, para assistir à quarta récita de sua nova produção de Os contos de Hoffmann, ópera de Jacques Offenbach (1819-1880), compositor francês nascido na Alemanha há exatos 200 anos. E que espetáculo! É uma montagem empolgante com um grande elenco de solistas. 

Dica de Escuta Naxos

Os contos de Hoffman foi a última obra de Offenbach, então um compositor já consagrado por suas operetas. Ao morrer, em 1880, o autor deixou a partitura incompleta, que desde então passou por inúmeras revisões e edições. A ópera gira em torno do escritor e poeta romântico alemão E.T.A. Hoffmann (1776-1822), cuja obra é marcada por contos alegóricos e fantásticos. Offenbach baseou-se na peça teatral Les contes fantastiques d’Hoffmann, de Jules Barbie e Michel Carré, estreada em Paris em 1851, que toma alguns dos personagens mais emblemáticos de Hoffmann para criar uma história em que o próprio Hoffmann é protagonista. É ele que acaba sofrendo com as desventuras amorosas de três mulheres que criou em seus contos – a boneca mecânica Olympia, a cantora Antonia e a cortesã Giulietta. E também da prima-dona Stella, que está se apresentando no teatro ao lado da taberna em que Hoffmann está enchendo a cara e contando as histórias de seus amores fracassados.

Cena da ópera Os contos de Hoffmann [Divulgação / Teatro Colón - Maximo Parpagnoli]
Cena da ópera Os contos de Hoffmann [Divulgação / Teatro Colón - Maximo Parpagnoli]

O grande destaque da produção do Colón é a concepção e direção cênica de Eugenio Zanetti, também responsável pela impressionante cenografia. De modo cuidadoso, Zanetti introduziu uma equipe cinematográfica na cena, bem como paparazzi, que acompanha os acontecimentos como se estivesse sendo feito um filme biográfico de Hoffmann. Com projeções que se inspiram no filme de Michael Powell de 1951, a abertura da ópera já é um espetáculo à parte. 

Uma inteligente estrutura modular, formada por duas amplas escadarias curvas e um átrio central, coberto, possibilita diversos espaços cênicos, sempre muito apropriados. A isso se soma a dinâmica do palco giratório, que, a cada virada, apresenta um novo ambiente. No fundo e nas laterais, em amplas telas, são projetadas imagens em movimento que definem as paisagens exteriores, normalmente em tons sombrios: Paris, Veneza, horizontes naturais – no ato de Antonia, as imagens lembram a Ilha dos mortos do pintor Arnold Böcklin. Junto com os caprichados e ecléticos figurinos, é um show de criatividade e bom gosto. As soluções propostas por Zanetti conseguiram criar uma unidade orgânica, sem comprometer o brilhantismo de cada uma das dezenas de cenas.

Mas ópera é, antes de mais nada, música, e sobrou música no Teatro Colón: foi muito boa a condução musical do espetáculo, dirigido vibrantemente pelo maestro Enrique Arturo Diemecke, também diretor artístico do Colón. Com o ritmo e a verve que o título exige, coro e orquestra rivalizaram em qualidade com o desempenho do elenco – também muito bom!

Hoffmann foi interpretado em alto nível pelo tenor mexicano Ramón Vargas, com bela e equilibrada voz além de boa presença cênica. Sua interpretação é tão natural que nem parece que ele está cantando. Seu amigo Niklausse foi feito com muita propriedade pela mezzo soprano Sophie Koch. O baixo Rubén Amoretti que, como leio no programa, iniciou a carreira de sucesso como tenor (!), encarnou os papéis dos vilões Lindorf, Copelius, Dr. Miracle e Dapertutto, com grande personalidade e voz sonora e bem modulada. Entre os papéis femininos, destacou-se a soprano Rachele Gilmore em uma ótima interpretação de Olympia. Foi bem também Milijana Nikolic como Giulietta. A soprano Virginia Tola fez Antonia. No geral, o conjunto de solistas demonstrou homogeneidade vocal e um nível artístico bastante elevado.

Como se não bastasse a ópera, ainda assisti, no dia 5, ao encerramento da temporada sinfônica da Filarmônica de Buenos Aires – que, como a orquestra da ópera, também é um corpo artístico do Colón. O maestro foi novamente Diemecke, com a participação do pianista David Fray, em um programa inteiramente dedicado a Ravel. Foi um bom concerto, com o Teatro Colón novamente lotado.

Temporada 2020

O Colón também já lançou a sua temporada 2020. Serão 8 títulos: Nabucco de Verdi (Renato Palumbo/Stefano Poda); O cônsul de Menotti (Justin Brown/Ruben Szuchmacher); Os pescadores de pérolas de Bizet (Srba Diniz/Michal Znaniecki); Tosca de Puccini (Keri-Lynn Wilson/Roberto Oswald); O ouro do Reno de Wagner (Enrique Diemecke/Arnaud Bernard); Lucia de Lammermoor de Donizetti (Evelino Pidò/Nicola Berloffa); Xerxes de Händel (Iñaki Encina/Alejandro Tantanian); e, em versão de concerto, La vida breve de Manuel de Falla (Carlos Vieu). O cônsul terá a participação do barítono Leonardo Neiva.

Na série de ópera de câmara, são três produções: El segundo violinista, de Donnacha Dennehy; La hija Rappaccini, de Daniel Catán; e Oficina 470, de Tomás Bordalejo.

Além disso, o Teatro Colón oferece séries de assinaturas para a temporada de balé (6 títulos), de concertos (com 21 programas e participação dos brasileiros Isaac Karabtchevsky e Jean-Louis Steuermann) e de 3 programas corais-sinfônicos (o Stabat Mater de Pergolesi, a Missa Solemnis de Bethoven e Les noces de Stravinsky). A casa também promove um Festival Beethoven, com 4 concertos sinfônicos com artistas como Martha Algerich, Charles Dutoit e Lars Vogt. Ainda tem a série de grandes intérpretes internacionais (Victoria Mullova, Pretty Yende, Gustavo Dudamel, Philippe Jaroussky entre outros), a conexão Bach-Beethoven (que terá a participação de Cristian Budu), uma série contemporânea, uma de experimentação e a infantil “Colón para chicos”. (Clique aqui para mais informações.)

O Teatro Colón é uma máquina geradora de cultura que não para! Seu compromisso com a ópera e a música clássica – e seu impacto social e econômico – bem que poderiam servir de inspiração para nossos governantes e lideranças públicas.

[Nelson Rubens Kunze viajou a Buenos Aires e assistiu a Os contos de Hoffmann a convite da direção artística do Teatro Colón.]

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Veja outras fotos da ópera Os contos de Hoffmann:
[Divulgação / Teatro Colón - Maximo Parpagnoli]

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