Personagens e mundos fraturados

por João Luiz Sampaio 25/07/2019

Os personagens das principais obras do compositor italiano Giuseppe Verdi carregam um dilema essencial: lidam com dramas individuais profundos, tornados mais doloridos por conta do mundo em que vivem, um mundo de incompreensão e preconceito. Essa oposição entre o pessoal e o coletivo é particularmente notável na chamada trilogia romântica. Em Rigoletto, La Traviata e Il Trovatore, os protagonistas são figuras marginalizadas (um bobo da corte, uma cortesã e um cigano), cujo contato com o mundo exterior significa a constante lembrança de seu próprio sofrimento – e de seu destino trágico.

Violeta sofre ao acreditar na possibilidade do amor, visto com maus olhos por uma sociedade que a entende apenas como cortesã. Manrico tenta entender suas próprias origens enquanto a nobreza o define como o vilão a ser combatido. Rigoletto, por sua vez, tenta proteger a filha, símbolo do lado humano desse homem “sozinho, disforme, pobre”, do conquistador Duque de Mântua, o libertino em cuja corte ele atua como bobo da corte.

Mas Rigoletto acrescenta uma complexidade a essa dualidade. Em um livro chamado O Teatro de Verdi, Gilles de Van chama atenção para o fato de que, na corte do duque, ele colabora com a perversidade da qual quer proteger sua filha. Ou seja, reforça e contribui para o comportamento do qual tem medo. Isso é tornado particularmente visível na montagem da ópera em cartaz no Theatro Municipal de São Paulo, assinada por Jorge Takla, quando logo no início é o bobo da corte que traz a filha do conde Monterrone para o duque.

Essa dualidade atinge seu ápice na cena do segundo ato em que, após ter a filha raptada, Rigoletto chega à corte. Em um primeiro momento, tenta descobrir seu paradeiro em uma conversa feita de insinuações e ofensas com os cortesãos; depois, ao se dar conta de que ela está em posse do duque, ameaça aquela “raça maldita”, até que, de joelhos, chorando, suplica que devolvam a filha “ao velhinho”, pois “ela é tudo para mim nesse mundo”. 

Verdi sabia das coisas. A música da cena em que coloca lado a lado as duas facetas de Rigoletto – sua figura pública e seu íntimo – é agressiva, dolorida, angustiada. Há ironia, raiva, sofrimento. Mas, na interpretação do barítono argentino Fabian Veloz, Rigoletto parece, desde o primeiro momento, vencido, derrotado. Não é um personagem no limite, em desespero em meio a suas próprias contradições, que o tornam tão rico e complexo. E isso o diminui na medida em que faz da decisão de encomendar o assassinato do duque não o fruto de uma decisão pessoal mas, sim, a consequência passiva da maldição que acredita ter caído sobre ele desde o início da obra.

Ópera Rigoletto [Divulgação / Fabiana Stig]
Ópera Rigoletto [Divulgação / Fabiana Stig]

Agressividade 

Jorge Takla criou, ao lado do cenógrafo Nicolás Boni, do figurinista Fábio Namatame e do designer de luz Ney Bonfante, um Rigoletto sombrio. Os cenários evocam o ambiente original da história, mas o fazem de maneira interessante. No primeiro ato, o palácio de Frederico II (em quem Verdi teria se inspirado para criar a figura do Duque), aparece majestoso, mas em ruínas, fragmentado; no segundo, a vizinhança de Rigoletto em Mântua também parece monumental, assim como as águas que se impõem perante o cenário do terceiro ato, perturbadas pela tempestade que no céu antecedem o assassinato em terra, como Rigoletto descreve a “noite de mistério” que encerra a ópera.

Há na monumentalidade a percepção da pequenez do ser humano, assim como, nas ruínas, o fracasso de uma ideia de civilização e uma sugestiva visão da relação com o tempo – e está aí a proposta geral do espetáculo, como diz o diretor, de mostrar que as questões colocadas pela ópera seguem atuais: assédio sexual e moral, corrupção, machismo, exclusão social. Como já propusera na Tosca, de Puccini, apresentada no Festival Amazonas de Ópera em maio, a volta ao passado de Takla parece um lembrete a respeito do mundo em que vivemos, de um país que imagina uma suposta transformação a partir do ódio, do preconceito individual que se pretende desejo coletivo, da agressividade que substitui o espírito público. E da misoginia que, como bem lembra a musicóloga Ligiana Costa em seu texto no programa do espetáculo, é um dos temas da ópera, que mostra a mulher como vítima da figura masculina em diversos níveis, seja do assédio, seja da proteção de um pai possessivo.

Essa agressividade é o fio condutor da interessante caracterização do duque, bem representada pelo tenor Fernando Portari que, lidando com um resfriado, nem sempre esteve na sua melhor forma vocal. Na primeira cena, ele estupra a filha de Monterrone, enquanto a corte (a sociedade) observa em êxtase e em silêncio; no dueto com Gilda, ele a persegue, segura, puxa, não é o pobre e inocente Gualtier Maldé, estudante pelo qual se passa para conquistá-la; no último ato, declara-se a Madalena (Juliana Tainno, cria do Ópera Studio da Escola Municipal de Música, em interpretação que já a coloca como uma das mais interessantes vozes da nova geração) enquanto abraça sem nenhum constrangimento outras mulheres.

É rica também a Gilda criada pela soprano russa Olga Pudova. Da coloratura bastante delicada na ária ela parte para uma concepção vocal, na cena final da ópera, em que os coloridos são mais escuros e a emissão mais intensa e visceral.

Escolhas

Do ponto de vista musical, Rigoletto é uma armadilha, como costumam ser todas as obras de transição. O espírito do bel canto está presente, ainda que se prestando a um sentido dramático novo: os malabarismos vocais de uma ária como “La donna è mobile” são tão frívolos quanto são doces e sinceras as coloraturas da ária em que Gilda sonha com o amor, “Caro nome”. Mas Verdi está testando novas ideias. O recitar cantando do dueto entre duque e Sparafucile (o impressionante baixo Luiz-Ottavio Faria, com presença cênica precisa, atenção ao texto – e graves realmente memoráveis) não coloca apenas desafios para os cantores, mas já exige da orquestra um outro tipo de postura no acompanhamento, assim como as cores sombrias do último ato, que se misturam ao ritmo frenético da cena final, em que o recitativo constante de Rigoletto acaba se transformando no último dueto com a filha. Há novas ideias, novas nuances – a serviço de um novo tipo de teatro musical.

Nesse sentido, o Rigoletto do Theatro Municipal (ao menos na récita do dia 23, a que assisti) se divide em dois espetáculos diferentes. O maestro Roberto Minczuk, regendo a Orquestra Sinfônica Municipal, opta por andamentos extremamente rápidos, que em alguns momentos atrapalham cantores experimentados e passam por cima de sutilezas da escrita e, do ponto de vista teatral, eliminam efeitos como o caráter sinuoso do dueto entre Rigoletto e Sparafucile. Além disso, há no espetáculo uma tendência generalizada pelo forte, o que diminui contrastes - e na falta deles, a noção de teatro vem de recursos que soam artificiais, como o crescendo no final de praticamente todas as cenas. Na segunda parte, a opção pela força se mantém, mas ainda assim a leitura ganha em dramaticidade. Foi particularmente rica em coloridos a música que acompanha a ária em que Rigoletto confronta os cortesãos. E todo o último ato, com uma introdução tenebrosa trabalhada com cuidado nas cordas, quase a simular o movimento das águas, assim como a atenção aos cantores na cena final. Aqui ao menos foi possível vislumbrar a noção de teatro que é a marca da genialidade de Verdi.

 

Leia mais
Notícias
Teatro Municipal terá récita extra de 'Rigoletto
Notícias Festival do Theatro da Paz, em Belém, muda de formato
Entrevista Maestro brasileiro é selecionado para programa de Dudamel em Los Angeles
Roteiro Prepare-se: destaques da semana
Colunistas Atalla Ayan, de Belém ao mundo inteiro em uma década, por Luciana Medeiros
Colunistas Leia outros textos de João Luiz Sampaio

Curtir