Um 'Fausto' de sonho, ao menos musicalmente

por Jorge Coli 21/07/2022

No dia 13 de julho aconteceu o último espetáculo da temporada 2021-2022 da ópera da Bastilha em Paris: Fausto, de Gounod.

Fausto, na França, foi o símbolo da ópera como arcaísmo cafona. 

Suas árias eram muito populares, conhecidas de todos, parodiadas. Hergé, ao criar o personagem da diva Castafiore, associou-a a Je ris de me voir si belle en ce miroir (Eu rio por me ver tão bela neste espelho), versos não muito inspirados, é verdade, uma ária que ela lançava a qualquer momento e sob qualquer pretexto.

Não foi por acaso que Jorge Lavelli escolheu o título empoeirado e meio ridículo de Fausto para, levando-o a sério, promover uma reforma nas montagens de ópera, inaugurando uma nova época que levou à renovação do interesse pelo gênero por parte do público e ao estímulo a novas concepções pelos encenadores. Ele regenerou Fausto de maneira magistral.

Hoje, Fausto surge fascinante de belezas aos nossos ouvidos e explorando com profundidade a acentuação erótica da história.

Do ponto de vista musical, dificilmente se pode imaginar hoje um melhor Fausto do que esse apresentado na Bastilha.

A começar pelo casal protagonista. Benjamin Bernheim é um tenor lírico incomparável em nossos dias. Com 37 anos, no apogeu de sua voz, com um timbre miraculoso de suavidade, com o controle absoluto da emissão, do fraseado, o perfeito sentido dramático, mostrou-se um Fausto histórico, de antologia. O modo como cantou Salut! Demeure chaste et pure, arrancou aplausos em cena aberta como raramente se ouve.

Angel Blue, que cantou a parte de Marguerite, está no centro do recente debate sobre a black face da Aida, em Verona, já que recusou cantar ali La traviata em represália a essa escolha. Grace Bumbry criticou-a por isso: para quem se interessa por questões ligadas à ópera em nossos dias, seu post é indispensável.

Resta o fato de que Angel Blue canta suntuosamente. Não sei de outro soprano de sua geração com um timbre tão aveludado e caloroso, com técnica tão controlada, com interioridade tão incandescente, escurecendo a voz na medida que a tragédia se abate sobre ela. Grande triunfo no final da ária das joias.

A essa dupla admirável acrescenta-se o Mefistófeles de Christian van Horn. É um baixo-barítono de altíssima qualidade, sua voz granulosa, áspera, adequa-se perfeitamente ao papel demoníaco. 

Perfeito como Valentin, o barítono Florian Sempey tem nobreza vocal muito romântica: imagino como ele seria esplêndido na encarnação do marquês de Posa ou como o sedutor Escamillo.

Com menos de 30 anos, a ítalo-canadense Emily d’Angelo encarnou Siebel – seu físico permitiu a personificação exata de um garoto, cuja voz vestia perfeitamente sua parte. Já é uma jovem grande cantora.

Sylvie Brunet-Grupposo assumiu o papel de Dame Marthe: cantora sólida, inteligente; Wagner coube a Guilhem Worms, cantor moço que fez lamentar o fato de sua parte ser tão pequena.

A esses intérpretes ideais, acrescente-se o esplendor dos coros e da Orquestra da Ópera Nacional de Paris, sob a regência de Thomas Hengelbrock, enérgica e lírica, nuançada e poderosa. Enfim, um Fausto de sonhos.
Ao menos musicalmente. 

Cena da produção de Tobias Kratzer para 'Fausto', de Gounod [Divulgação/Ópera Nacional de Paris]
Cena da produção de Tobias Kratzer para 'Fausto', de Gounod [Divulgação/Ópera Nacional de Paris]

Resta a montagem de Tobias Kratzer. Teve bons momentos, e outros, menos bons.

Sua primeiríssima grande qualidade foi a clareza. A ação permitia a leitura precisa, tanto da história original quanto dos elementos acrescentados pelo encenador, o que não é pequeno mérito. 

Em seguida, a verossimilhança da transposição para o mundo contemporâneo, sem que nada parecesse forçado. Alguns momentos foram muito bem sucedidos: o primeiro ato, em que Fausto surge como um velho libidinoso e, sobretudo, o quadro do retorno e da morte de Valentin, transmitindo grande emoção.

Porém, o encenador tinha, por vezes, um defeito que não é raro: o de complementar o canto por ações paralelas que desviam a atenção da música, como se ópera, coisa chata, exigisse divertir o espectador enquanto a ária transcorre. Por exemplo, enquanto Mefistófeles entoava sua canção do bezerro de ouro, um grupo de basqueteiros se exercitava nos fundos.

Nesse sentido, o pior exemplo foi durante a ária de Marguerite, tão sincera, dolorosa, tocante, Il ne revient pas, que Angel Blue cantou divinamente. A cena se passou num consultório de ginecologista; Marguerite se presta a um exame de ultrassom. Ora, a imagem desse exame foi projetada em tamanho enorme, mostrando o feto que, no final, revelou dois chifrinhos, como se fosse filho do diabo. Esse bebê de Rosemary fez a plateia rir o tempo todo, divertida com a solução cênica, esquecendo-se inteiramente da música.

O final foi curioso: nada acontece para Fausto, Margarida e Mefistófeles, mas é o pobre Siebel que, sem nada a ter com isso, é enviado aos infernos. Solução qualquer coisa, n’importe quoi, como dizem os franceses, talvez busca de originalidade a qualquer custo.

A marca geral da montagem foram imensos vídeos projetados, servindo de suporte para Mefistófeles e Fausto que voavam. O balé foi substituído por uma cavalgada por Paris, quando o diabo põe fogo na catedral de Notre Dame.

Esses efeitos espetaculares, que impressionaram num primeiro momento, eram longos, repetitivos, e revelaram-se uma solução fácil e artificial. Por várias vezes, o encenador parecia não levar a sério a obra que propunha, como se ele próprio fosse superior a ela.

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