Um Mozart de belas qualidades

por Jorge Coli 20/04/2023

Apesar de ressalvas à direção cênica, seria injusto não reconhecer excelência da produção de O rapto do serralho, de Mozart, no Theatro São Pedro

A apresentação da ópera O rapto do serralho, de Mozart, no Theatro São Pedro, de São Paulo, tem belas qualidades.

A orquestra, desde a abertura, soava muito bem, com transparência, fazendo sobressair a expressão clara de cada naipe. A regência de Claudio Cruz, plástica, intuitiva, equilibrada, inteligente, pôs em evidência as geniais qualidades da música.

O elenco foi homogêneo e de grande nível. Ludmilla Bauerfeldt, com belo timbre e formidável projeção vocal, assumiu o terrível papel de Konstanze, apenas, talvez, com alguma perda de timbre nos agudos extremos, sem que isso prejudicasse sua interpretação. Ana Carolina Coutinho foi uma Blonde ideal, de timbre dourado: é uma jovem que tem, sem dúvida, uma carreira muito promissora diante de si.

Belmonte, o namorado de Konstanze, é também um papel difícil, mas caiu como uma luva em Daniel Umbelino, que triunfou nele. Luiz-Ottavio Faria emprestou seus magníficos graves para o truculento Osmin. Um perfeito Pedrillo foi cantado pelo excelente Jean William, e Fred Silveira deu presença e autoridade ao papel falado do Paxá Selim. É muito bom constatar que com um elenco, orquestra e maestro exclusivamente brasileiros, essa ópera de Mozart tenha atingido tão belo nível.

Os cenários de Nicolás Boni são suntuosos, lindos, numa produção claramente opulenta com excelentes figurinos.

Tudo pelo melhor no melhor dos mundos? Jorge Takla, que compartilhou a direção cênica com Ronaldo Zero, já nos ofereceu magníficos espetáculos e pode suportar uma restrição a este. 

A trama é transposta para os anos de 1920 – embora no início uma silhueta manipule um telefone celular, acessório bem frequente quando se quer tirar risadinhas fáceis do público. 

Essas transposições viraram lugar-comum nas encenações contemporâneas já há bastante tempo; eu mesmo lembro-me de uma Le nozze di Figaro, no ano muito remoto de 1979, no festival de Aix-en-Provence (com Hendricks, Masterson, Ramey, regida por Marriner), em que Jorge Lavelli fazia exatamente a mesma coisa, transpondo a história para as années folles.

Ocorre que, nesta produção do São Pedro, os encenadores decidiram fazer a história transcorrer em Paris, no Hotel Ritz, hotel mitológico de milionários e gente famosa: do saguão se via a coluna Vendôme. Ora, a ópera de Mozart tem um tema caro ao Iluminismo: a crítica da cultura ocidental pondo-a em paralelo com outras culturas. Uma barbárie aparente, encarnada pelo personagem bufo de Osmin, não oculta um alto grau intrínseco de sabedoria, que põe a civilização muçulmana moralmente acima da ocidental. O personagem de Selim, ao dominar suas pulsões afetivas, eróticas, e ao julgar com serenidade, generosidade e justiça, é um “déspota esclarecido”, como se dizia no século XVIII, e dá uma lição para os governos do Ocidente.

Se fosse mesmo necessário transpor a época – que era contemporânea no tempo de Mozart e que pode continuar assim nos nossos dias – por que não para algum lugar como Riad, Dubai ou Abu Dhabi?

Ora, O rapto do serralho dispõe com clareza o contraste entre culturas, que deve ser configurado teatralmente em grande parte pelo contraste das roupas. No meio internacional de um hotel de luxo nada disso fica evidenciado; e como conceber torturas e execuções ali, no meio da Paris mais chique? Os encenadores bem sentiram a dificuldade, quando incluíram, no texto falado, o fato de que, nos aposentos do Pachá, como numa embaixada, o território não seria mais francês. Isso, porém, nada resolve dentro de uma perspectiva teatral.

Fiquei pensando se a inspiração dos encenadores não teria vindo do desastre que matou a princesa Diana de Gales. Hospedada no Hotel Ritz, ela saíra dali na noite do acidente. Estava com seu namorado Dody Fayed, filho do milionário egípcio e muçulmano Mohamed Al-Fayed, atual dono do hotel. A Mercedes que os levava fugia dos paparazzi, quando o choque no túnel de l’Alma ocorreu. Ora, a montagem introduziu um grande número de paparazzi o tempo todo – incluindo durante a abertura, quando são expulsos de cena gritando muito e de maneira inexcusável: neste caso, a encenação achou-se mais importante do que a música de Mozart. Esses paparazzi funcionavam como perturbações bastante irritantes durante as árias. Foram um mote constante do espetáculo.

Pode ser que eu esteja fazendo ilações não justificadas. Pode ser que essas coincidências entre a montagem e a morte de Lady Di tenham sido casuais. Porém, seja como for, permanece o fato de que as interrogações contidas na obra de Mozart se perderam. Elas continuam atuais. Se fosse mesmo necessário transpor a época – que era contemporânea no tempo de Mozart e que pode continuar assim nos nossos dias – por que não para algum lugar como Riad, Dubai ou Abu Dhabi?

Enfim, nada disso impede que este O rapto do serralho seja um espetáculo de alto nível e deva ser visto. Inda mais porque óperas de Mozart têm sido tratadas de modo indigente e simplório em São Paulo. Seria injusto não reconhecer excelência dessa produção atual do São Pedro.

'O rapto do serralho' segue em cartaz no Theatro São Pedro de São Paulo até o dia 28 de abril; veja mais detalhes no Roteiro do Site CONCERTO

Cena de 'O rapto do serralho', de Mozart, em cartaz no Theatro São Pedro de São Paulo [Divulgação/Heloisa Bortz]
Cena de 'O rapto do serralho', de Mozart, em cartaz no Theatro São Pedro de São Paulo [Divulgação/Heloisa Bortz]

 

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Comentar sobre algo escrito por Jorge Coli em relação a qualquer ópera chega a ser uma ousadia, mas como corroboro com sua opinião, sinto-me perdoado. Pessoalmente, sou um espectador que prefere as encenações sem grandes atualizações ou modernizações. Muitos gostam delas, incluindo certos críticos, mas somente as qualifico positivamente quando se conectam com desafios atuais como diversidade ou desigualdade, e não com smartphones, paparazzis, etc.
Em relação à qualidade do espetáculo em si, a orquestra, os cantores, os cenários, etc., senti orgulho e prazer por poder desfrutar de um momento cultural tão rico e belo como foi esta versão de "O Rapto do Serralho".
Vida longa e próspera ao nosso Theatro São Pedro!

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