“Power trio” é a expressão muito feliz que o mundo do rock criou para cunhar formações de guitarra, baixo elétrico e bateria que vêm causando furor nas últimas seis décadas. Dependendo da geração ou da inclinação musical, todo roqueiro tem seu “power trio” de preferência – do Cream (de Eric Clapton) e Jimi Hendrix Experience ao Nirvana, passando por Rush, Motörhead e The Police, dentre muitos outros.
Pois bem: a música clássica brasileira agora também tem seu “power trio”. A formação, obviamente, é diferente: piano, violino e violoncelo. Mas se trata de uma trindade “power” de virtuoses no auge da maturidade física e intelectual, com absoluto domínio de seus instrumentos, e uma química eletrizante no fazer musical conjunto.
O violoncelista pernambucano Antonio Meneses é uma das maiores glórias musicais que nosso país já produziu, consagrado com a vitória no Concurso Tchaikóvski, em Moscou, em 1982. Seu fazer musical, que sempre foi refinado, apurou-se ainda mais como camerista ao compartilhar da bendita sabedoria de Menahem Pressler na década em que foi membro da última formação do Beaux Arts Trio.
Outro nordestino, o pianista baiano Ricardo Castro, ganhou as manchetes com o primeiro prêmio do Concurso de Leeds, em 1993. Estava com uma confortável carreira europeia quando voltou ao Brasil e, em 2007, implementou o Neojiba, visionário programa de educação musical da Bahia que deveria servir de paradigma de excelência para nosso país. De alguma forma miraculosa, conseguiu conciliar as atividades de regente e gestor do programa com as demandas exigentes do teclado, e manteve-se como um dos mais gloriosos representantes da linhagem de pianistas brasileiros.
Outro milagre de conciliação entre diversas atividades é o violinista Cláudio Cruz. Depois de décadas como o “spalla” dos sonhos das orquestras brasileiras, começou uma sólida carreira de regente, operando um impressionante salto de qualidade na Orquestra Jovem do Estado de São Paulo, e dirigindo aclamadas montagens de ópera no Theatro São Pedro. A batuta, contudo, não relegou o violino a segundo plano, e ele segue sendo uma das grandes referências do instrumento em nosso país.
Se, isoladamente, cada um dos ases dessa trinca vem ganhando todas as partidas que se propõe a jogar, juntos eles multiplicam seus talentos e saberes de forma sedutora. E, em mais um lançamento irresistível do Selo Sesc, eles colocam suas qualidades a serviço da música brasileira, gravando os trios de nosso compositor maior: Heitor Villa-Lobos (1887-1959).
Para além da excelência técnica superlativa, Castro, Meneses e Cruz encantam com a inteligência e convicção com que abordam cada um dos trios.
Os trios com piano são obras escritas entre 1911 (o primeiro) e 1918 (o terceiro e último) – antes, portanto, da viagem do compositor a Paris. Embora o autor, na época, não tivesse jamais botado os pés em solo gálico, as partituras exalam perfume francês a cada página. Afinal, como escreveu Monteiro Lobato em 1916, na época o Brasil era uma espécie de “colônia mental da França”, e seguia-se aqui o padrão ditado pelo país europeu.
Contudo, a resposta de Villa-Lobos à influência estrangeira é sempre bastante pessoal e diversificada. A escrita para cada um dos instrumentos é muito virtuosística, e evolui visivelmente de um trio para o outro. Sua importância na produção do compositor está longe de ser marginal, e serviram como seus cartões de visita musicais. Basta notar que os dois últimos trios foram incluídos na programação da Semana de Arte Moderna, em 1922 – e que o terceiro, como nota Eero Tarasti, foi a obra que cativou a atenção de ninguém menos do que Arthur Rubinstein (pianista polonês decisivo para a recepção internacional da obra de Villa-Lobos, e influência fundamental para que ele conseguisse apoio para viajar a Paris) em sua vinda ao Brasil, em 1918 – de tão entusiasmado, Rubinstein chegou a prometer executar a obra nos Estados Unidos, no mítico trio que tinha com Jacques Thibaud e Pablo Casals.
Para além da excelência técnica superlativa, Castro, Meneses e Cruz encantam com a inteligência e convicção com que abordam cada um dos trios. Trazendo a clarividência cosmopolita adquirida ao longo de décadas de experiência para decifrar as partituras nem sempre evidentes de Villa-Lobos, os três craques demonstram a cada compasso um comprometimento com a música brasileira que se traduz em uma realização sonora impressionante.
Se apenas unisse esses três luminares tocando obras de nosso maior compositor, o disco já seria histórico. Ele traz ainda, porém, um “quarto elemento”, de uma geração mais jovem – mas nem por isso menos talentoso ou amadurecido. Gabriel Marin, o violista que desmente todas as piadas infames feitas sobre seu instrumento, teve a honra de ser convocado por esses bambas para tocar no Trio de Cordas.
Datado de 1945, foi encomendado pela Coolidge Foundation, dos EUA, e estreado em Washington. Trata-se, portanto, de peça da maturidade de Villa-Lobos, quando o compositor já era consagrado e requisitado dos dois lados do Atlântico.
Não deixa de ser instrutivo cotejar as três obras “pré-Paris” de Villa-Lobos com essa partitura de três décadas depois. Trios de cordas, em geral, são relativamente raros – o que não surpreende, dada a dificuldade de equilibrar os instrumentos. No caso específico de Villa-Lobos, o trio oferece dificuldades tanto do ponto de vista técnico (especialmente a afinação), quanto do musical (a compreensão e realização de sua intricada polifonia). Longe de intimidar, os desafios parecem, contudo, estimular Cruz, Meneses e Marin, que oferecem uma leitura translúcida, cristalina e inspiradora da obra. Devo confessar que venho revisitando repetidamente o lirismo do Andante do trio. E o álbum inteiro convida a uma audição repetida e prazerosa.
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Comentários
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Fiquei muito feliz em saber…
Fiquei muito feliz em saber do lançamento desse CD, que reúne o que há de melhor em nossa música clássica.
Quando será que poderemos conferir tanta virtuosidade, mas ao vivo?