Já se passaram alguns dias, mas confesso que escrevo ainda sob o impacto do excelente concerto do dia 19, na Sala São Paulo, dentro do 50º Festival de Inverno de Campos do Jordão. As Classes de Tuba e de Percussão responderam ao grande público presente – mais de mil pessoas – com uma apresentação admirável sob todos os aspectos.
A começar pelo repertório. Não sei quem montou o programa, só que foi ideia de Fábio Zanon, coordenador artístico e pedagógico do festival, a inclusão de Couleurs de la cité celeste (1963), Cores da Cidade Celestial, de Olivier Messiaen (1908-1992). A obra é ambiciosa e envolveu 22 músicos, com destaque para o pianista Paulo Álvares e o regente Wagner Polistchuk. O concerto inteiro girou em torno desta obra-prima da música do século XX, que só agora, mais de meio século depois, foi estreada no Brasil.
Até a peça do quarteto de tubas, que abriu a noite, tinha a ver com Messiaen: uma tranquila Moondance, Dança Lunar, de John Stevens. As outras duas peças são seminais na música do século XX: em termos planetários, a Terceira construção, para quarteto de percussionistas, de John Cage, de 1943; e, em termos brasileiros, Rhythmetron, de 1958, uma das melhores criações do pernambucano Marlos Nobre, para dez percussionistas.
Minha intenção não é comentar o concerto, mas refletir em torno de seu significado simbólico. Pela primeira vez um concerto inteiramente preenchido com música contemporânea atraiu tamanho público à Sala São Paulo. Bolsistas, professores e profissionais envolvidos com o festival não ultrapassariam as 200 pessoas. O restante era público mesmo. A que se deveu este interesse? Um amigo lembrou que a Sala São Paulo – agora comemorando seus 20 anos – é um ponto turístico da cidade. Todo mundo que visita São Paulo dá um jeitinho de conhecer a Sala e tirar um selfie.
Pode ser. Mas, se fosse este o motivo, a maioria teria saído já na segunda peça, a de Cage, já apetrechada de selfies no celular, a frasqueira eletrônica preferencial que nos acompanha 24 horas por dia atualmente. Só houve uns dois casos de retirada, e por causa de tosse. Ou seja, isso significa que o público estava ali para acompanhar o concerto inteiro. Há um imenso repertório de música viva que ainda não foi ouvido no país à disposição dos senhores programadores de concertos. Com um detalhe fundamental: nunca como hoje a cena musical foi tão diversificada. Não existe mais a hegemonia adorniana da música contemporânea como exclusivo repositório do dilaceramento de nossa realidade perversa, mensagem na garrafa a ser compreendida apenas por futuras gerações.
Também não vigora hoje uma só estética a agir como camisa-de-força para a criação musical. Do mesmo modo como a música serial separou, como dizia Boulez, os compositores entre os que a assumiam e faziam grande música, e os imbecis que ainda praticavam a música tonal, aqui no Brasil também houve uma caça às bruxas cosmopolita feroz por parte do nacionalismo musical capitaneado por Mário de Andrade. Mário intimidava os compositores com sua postura nos anos 1920/30. Dois exemplos: Francisco Mignone (1897-1986), que numa carta diz com todas as letras que fez música nacionalista porque não era besta de enfrentar sua ira. Escondeu dele suas cançonetas francamente populares com o pseudônimo de Chico Bororó, e foi gravado até por Francisco Alves. Outro foi Henrique Oswald (1858-1931), que viveu décadas na Europa e tinha uma sensibilidade puramente romântica, distante do nacionalismo. Pois, segundo José Eduardo Martins, que possui o manuscrito de seu Étude II para piano solo, Oswald transformou inocentes tercinas em síncopes na partitura publicada, a fim de agradar a Mário.
Contei tudo isso só com a intenção de dizer que também a música mais experimental tem seu lugar assegurado no caleidoscópio – ou caldeirão, como queiram – das músicas contemporâneas. E, no melhor dos mundos, pode até atrair ótimo público, como aconteceu no último dia 19 na Sala São Paulo.
Que a lição dê frutos... e propicie “filhotes” tão interessantes quanto este durante as temporadas normais de concertos.
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