Nesta terra em que os projetos de longa duração definham precocemente, o Festival Amazonas de Ópera continua se mostrando como caso excepcional, que nem o coronavírus conseguiu derrubar
O Festival Amazonas de Ópera (FAO) sempre teve, não apenas alta qualidade artística, mas a mais estimulante programação neste país. Seu diretor, o maestro Luiz Fernando Malheiro, é incansável.
Nestes tempos de pandemia, e num estado da federação que foi atingido de maneira particularmente trágica pelo coronavírus, o que pode fazer um festival de ópera? O Festival Amazonas responde com a energia que é a sua: sobretudo não abaixar os braços; estabelecer uma programação que utilize a internet e, ainda, encomendar obras novas que se adaptem a esse meio específico.
A primeira ópera, e que inaugurou o FAO deste ano, foi Três minutos de sol, com música de Leonardo Martinelli e libreto de João Luís Sampaio. Não pude ver a estreia, que ocorreu no dia 6 de junho e, por razões diversas, fui protelando. Assisti ao vídeo apenas hoje. Sobretudo, não faça como eu, não protele. Clique já aqui, e assista. Porque Três minutos de sol é espantosa, admirável em todos os sentidos: musical, cênico, cinematográfico e interpretativo. Trinta minutos de um fantástico momento de arte em nível altíssimo.
Leonardo Martinelli é o mais sorridente e simpático dos Leonardos compositores, mas sua veia criadora tende para a meditação e a profundidade. A música que escreveu para Três minutos de sol, concentrada em pequena orquestra e três cantores, tece uma trama muito delicada, mesclando timbres, envolvendo o ouvinte num tecido sonoro que se desenrola com a mais suave melancolia da solidão.
Três seres, isolados por causa da pandemia, canalizam seus afetos por meio dos computadores e celulares, na busca de um contato, de um alimento para suas emoções. O libreto de João Luiz Sampaio exprime essas vozes internas que tentam vazar os sentimentos em canais tão estreitos: emprega frases corriqueiras, sem arroubos líricos, mas que, pouco a pouco, vão secretando uma verdade humana que comove.
Os cantores são magníficos: Lina Mendes, jovem soprano que vem afirmando sua carreira nos últimos anos; Sávio Faschét, brilhante contratenor de forte personalidade cênica; Vítor Mascarenhas, barítono, dono de um timbre cuja beleza se impõe de imediato, último e recentíssimo vencedor do primeiro prêmio masculino no concurso “Maria Callas”. Em particular, é comovente como eles se unem em um trio: união que se forma para nós, espectadores, mas não para os personagens, que continuam isolados. Ou que se encontram apenas em seus desejos e em seus imaginários.
Nas óperas, a música e o libreto formam o que permanece, as interpretações e as montagens seriam o efêmero, o que se modifica. No caso de uma ópera como esta, feita para ser gravada em vídeo, tudo parece participar com mesma força na constituição da obra definitiva. Separar, como estou fazendo, música, libreto, cantores, torna-se, neste caso, um pouco artificioso. Não consigo encontrar outro modo para escrever sobre essa vídeo-ópera, mas é preciso considerar que tudo concorre num todo. Imagino que a regência – precisa, delicada, de Otávio Simões – teve que se adaptar às exigências do processo técnico.
E fica participante, em modo definitivo, da ópera, a direção de cena, de vídeo, de Julianna Santos, retomando a parceria que teve com a cenógrafa Giorgia Massetani na montagem da ópera Alma, escrita por Claudio Santoro, e que foi um dos grandes momentos do Festival Amazonas de Ópera.
Composição, texto, intérpretes, filmagem, constituem, portanto, um todo inseparável, que resultou numa grande obra de arte. Nesta terra em que os projetos de longa duração definham precocemente, o Festival Amazonas de Ópera continua se mostrando como caso excepcional, que nem o coronavírus conseguiu derrubar.
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