Ópera na Tela promove pré-estreia do filme ‘Il Boemo’; leia entrevista com o diretor

por Luciana Medeiros 17/09/2023

Na Itália do século XVIII, a ópera era pop. Divas circulavam como celebridades, entre nobres e comerciantes; óperas eram estreadas com grande estrépito; empresários disputavam novidades para chamar o público aos palcos de Veneza, Roma, Bolonha, Pádua. Foi ali – em Veneza, especialmente – que desabrochou o talento do tcheco Josef Myslivecek (1737-1781), que alcançou considerável sucesso em seu tempo mas caiu no esquecimento.   

O premiado diretor tcheco Petr Václav também não conhecia o conterrâneo, mas ao se deparar com a história de sucesso e desaparecimento de Myslivecek, decidiu se aprofundar no assunto – primeiro, com o documentário Zpověď zapomenutého (Confissões do Desaparecido), de 2016, e agora com Il Boemo, primeiro filme de ficção que o projeto Ópera na Tela programa. O longa será exibido em pré-estreias dias 17 de setembro, no Parque Lage (RJ), às 19h, e dia 19, às 19h30, no Espaço Itaú de Cinema – Augusta, em São Paulo.. 

Em 130 minutos, acompanha-se a ascensão e a queda do criador de 26 óperas, em um ambiente requintado, marcado pela vida libertina e no limiar das mudanças históricas e estéticas que o século XIX traria. O protagonista é vivido pelo cantor e ator tcheco Vojtěch Dyk e, entre os personagens reais retratados no longa, figura a mítica soprano coloratura Caterina Gabrielli (1730-1796), encarnada pela italiana Barbara Ronchi. 

Vaclav está no Brasil para acompanhar essas estreias e conversou com a CONCERTO.

O que o levou à história de Josef Myslivecek?
Curiosidade para entender quem era esse compositor de origem tcheca, tão conhecido no século XVIII e hoje esquecido. Sua carreira na Itália foi estrondosa, era admirado pelo jovem Mozart, que ele conheceu em Bolonha e Milão quando o garoto genial – aos 13 anos – viajava com o pai, Leopold, pensando em estabelecer-se definitivamente na Itália. Os dois se tornaram amigos. Myslivecek tinha 33 anos, escrevia sua oitava ópera italiana. Mozart sonhava com uma carreira italiana semelhante à do tcheco, chamado de Il Boemo. E embora Myslivecek tenha tentado ajudar Mozart, ele nunca conseguiu uma encomenda para ele em Nápoles. Depois a história o esqueceu e foi Mozart quem foi lembrado.

Sua biografia e sua música tiveram que ser levantadas para a produção? Como foi esse processo?
Compreender a biografia de Myslivecek não foi difícil. Rapidamente entendi que sua história era comovente. Descobrir sua música foi mais difícil. Myslivecek escreveu vinte e seis óperas na Itália, dois oratórios e todos os tipos de música sinfônica e de câmara. Mas com algumas raras exceções, nada disso foi registrado. As óperas foram raramente montadas nos séculos XIX e XX. Encontrei apenas duas gravações de suas óperas, mas eram produções medíocres que prejudicaram bastante a música de Myslivecek. Apenas a soprano Magdalena Kozena gravou maravilhosamente três ou quatro árias de Myslivecek. Isso é tudo. Tive que consultar os arquivos, com Vaclav Luks, grande maestro e especialista em música barroca. Copiamos várias partituras e ele se encarregou de me mostrar a música, explicou-me a orquestração. Demorou alguns anos até podermos ouvir a primeira ópera de Myslivecek, cantada por excelentes cantores, interpretada pela orquestra de Vaclav Luks, o Collegium 1704, uma orquestra barroca muito popular na Europa.

Ele é precursor do romantismo: está em busca de liberdade. Não estava vinculado a nenhuma corte, a nenhum senhor, não tinha patrono, o que era raríssimo na época. Ele levou uma vida de rara independência

Apesar do seu sucesso, seu protagonista parece cercado de melancolia. Essa é a impressão que você queria trazer ao espectador? 
Myslivecek construiu seu sucesso com trabalho constante e incerteza incessante. Na época, o compositor ainda não era um artista consagrado que fascinava multidões. Isso viria mais tarde, com o romantismo. Um compositor era considerado um servo que poderia facilmente perder o emprego. Um único fracasso, uma única ópera que não agradasse poderia ter consequências dramáticas: a perda de novas encomendas. A competição era dura, era preciso estar atualizado e alinhado com a classe dominante. Como músico, Josef Myslivecek não foi um revolucionário. Compôs de acordo com a moda de sua época, de acordo com o gosto da classe dominante. Mas como pessoa privada, ele já é o precursor do romantismo: está em busca de liberdade. Não estava vinculado a nenhuma corte, a nenhum senhor, não tinha patrono, o que era raríssimo na época. Ele levou uma vida de rara independência. Ele viaja por toda a Itália. Viajar era muito caro naquela época. Ele estava endividado o tempo todo. Sua música tinha muita profundidade, expressava muito bem a intensidade dos conflitos e o sofrimento dos personagens. Provavelmente é isso que você define como melancolia. De minha parte, associo a melancolia a um certo amor pelo passado, pelas lembranças. Este não é o caso de Myslivecek, que tem um tremendo impulso projetivo, mesmo quando está doente. Ele sempre avança. Ele não pode fazer de outra forma. Ele tem que trabalhar para pagar seus tratamentos. Ele é alguém que sublima através de sua arte. E quando ele está muito doente, não lhe resta nada além da sublimação, da composição.

Cena do filme 'Il Boemo' [Divulgação]
Cena do filme 'Il Boemo' [Divulgação]

E como você explica o esquecimento de sua música?
Na era de Il Boemo, a música era um produto de consumo. A cada temporada, enfeitava-se um antigo libreto de ópera com músicas novas e passava-se para outra coisa. Esta é a primeira razão. A segunda razão é a sífilis. Il Boemo morreu de doença venérea, por isso é considerado uma pessoa de vida dissoluta, moralmente repreensível. A terceira razão? Nunca se casou, não teve filhos, não tinha ninguém que defendesse a sua posteridade. Quarta razão: a musicologia alemã favorecia Mozart e não queria nenhuma sombra de seu compatriota eslavo.

Mesmo em tempos de resgates históricos, no século XX, não se deu uma redescoberta de Myslivecek?
Essa é a quinta razão: Myslivecek permaneceu mais conhecido na Boêmia, na Tchecoslováquia, seu país de origem. Mas o comunismo não queria falar muito de um compositor que trabalhava para a nobreza italiana, preferia figuras mais recentes que pudessem ser utilizadas como compositores “nacionais” que defendiam a Nação e a Pátria. Portanto, não houve interesse em torno de Myslivecek. A Checoslováquia totalitária e russificada (1948-1989) era de terrível mediocridade intelectual. Além disso, o Estado não permitiu que musicólogos tchecos acessassem livremente arquivos no exterior, neste caso na Itália. Ninguém se importava com Josef Myslivecek e seu trabalho naquela época. E quando o país se tornou livre, em 1989, voltou-se mais para o dinheiro do que para a cultura. Levamos dez anos, meu produtor e eu, para conseguir viabilizar o projeto e arrecadar fundos para dar vida a esse roteiro.

Finalmente, gostaria que você falasse sobre o trabalho impecável na direção de arte, com a reconstituição do ambiente oitocentista nos cenários, figurinos, iluminação.
Trabalhei com um grande figurinista italiano, Andrea Cavalletto. É um homem de grande cultura e um grande conhecedor do século XVIII. Compartilhei com ele todas as referências que acumulei. Trabalhamos juntos e foi muito agradável. O filme teve dificuldades financeiras e também foi rodado durante a pandemia, na Itália e na República Tcheca. O trabalho do cenógrafo teve então que ser dividido entre um napolitano, Luca Servino, e uma tcheca, Irena Hradecka. Depois houve cenas que eu próprio montei. Aproveitei muito os locais históricos onde pude organizar tudo ao mesmo tempo, com ajuda de um assistente; pedi emprestados móveis e objetos dos proprietários para complementar nosso acervo. Adoro trabalhar com atores, gosto de enquadrar certas cenas de vez em quando. Mas considero – numa base puramente pessoal – que o trabalho de direção de arte não pode ser inteiramente delegado a outro profissional, já que a direção de arte é parte fundamental da produção.

O cineasta Petr Vaclav, diretor de 'Il Boemo' [Divulgação]
O cineasta Petr Vaclav, diretor de 'Il Boemo' [Divulgação]

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