Há, no teatro de La Monnaie, em Bruxelas, um programa muito simpático. É chamado Concertini. Todas as sextas-feiras, ao meio-dia, acontece uma apresentação de câmara. Pude assistir a uma, no dia 4 de fevereiro.
Passa-se numa sala muito bonita do teatro, pequena, para 50 ou 60 espectadores. A maioria é composta de idosos, animados, aquecidos pelo prazer de ouvir música durante o inverno rigoroso. O ambiente é aconchegante e sente-se que há uma fraternidade musical no ar.
Nesse dia 4, apresentavam-se duas pianistas – Emmanuelle Turbelin e Julie Delbart – em obras a quatro mãos. Ambas são jovens, ambas avançam em carreira de solistas e acompanhadoras.
Escolheram um cuidado programa francês: os maravilhosos Jeux d’Enfants, de Bizet; duas obras divertidas e imaginativas de Emmanuel Chabrier, Cortège burlesque e Bourrée fantasque, terminando com a Rapsodie espagnole, de Ravel. Foi preciso, fluente, envolvente e delicado. Ao saírem, os espectadores enfrentam melhor a tarde fria e úmida, graças às boas energias sonoras.
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Em Liège, a Ópera Real da Valônia estreou um espetáculo quase 100% feminino, associando duas óperas curtas: a muito rara Mese Mariano, de Giordano, e Suor Angelica, de Puccini.
Os elencos são femininos, inteiramente em Puccini, e quase totalmente em Giordano. A diretora de cena é também uma mulher, Lara Sansone, cenários de Francesca Mercurio, figurinos, esplêndidos, de Teresa Acone, e é Oksana Lyniv, regente ucraniana que comanda a música.
A associação das duas óperas não poderia ser mais feliz. Em ambas, questões femininas: opressão por preconceitos, maternidades sequestradas, peso da religiosidade. Ambas se passam num meio de freiras, um orfanato, um convento.
Além disso, Mese Mariano é precursora em sete anos de Suor Angelica, e há uma evidente afinidade de espírito e de estilo entre ambas.
Deu certíssimo. Mese Mariano tem orquestração mais leve, trama mais simples, organizando-se em volta de uma grande cena, dolorosa, de Carmela, a protagonista. Um ótimo primo piatto. O secondo, Suor Angelica, mais amplo, mais terrível, eclode num colorido intenso.
Intérprete das duas protagonistas, Serena Farnocchia dominou os papéis com sua voz muito poderosa, calorosa, que se desabrocha nos agudos sem nenhum esforço. Grande atriz, ela comoveu como Carmela e compartilhou o sofrimento de Suor Angelica com força expressiva: seu Senza mamma pareceu arrancado do fundo do coração.
Outra presença vocal, ilustre, a de Violetta Urmana, madre superior em Mese Mariano, e Principessa em Suor Angelica: há certa perda de homogeneidade nos registros, mas que formidável encarnação dos personagens! Suas primeiras palavras, Il príncipe Gualtiero, vostro padre, foram assustadoras como as de um monstro sobrenatural em filme de terror.
A regente Oksana Lyniv soube associar leveza, transparência – que trouxe um aporte à magnífica orquestração de Puccini – à precisão, à amplidão, cuidando dos detalhes, antes articulando do que fundindo, em modo muito pensado, mas sem que isso tolhesse a profunda emoção.
Lara Sansone concebeu a cena com grande respeito do libreto, o que fez sobressair como que espontaneamente as qualidades dramáticas e musicais das obras. O efeito da aparição sobrenatural da Virgem Maria em Suor Angelica, com a freira arrastando-se a seus pés, foi comovente às lágrimas.
O espetáculo ocorreu no dia 6 de fevereiro.
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O canto de câmara, na Inglaterra, tem uma antiga e admirável escola, que produziu alguns dos intérpretes mais perfeitos do gênero. O tenor Mark Padmore é um de seus mais impressionantes exemplos nos dias de hoje.
Ilustre Evangelista, na Paixão segundo São Mateus, de Bach, que canta e que também ocorre reger, admirável no lied, como testemunham, entre outras, suas gravações de Schwanengesang e Winterreise, de Schubert (ambas editadas por Harmonia Mundi) ele ofereceu, na grande e bela sala do teatro de La Monnaie, um recital em francês e em inglês.
Os ingleses são os melhores intérpretes... da música francesa. Abordam esse repertório com afeto e requinte, valorizando compositores que nem sempre são estimados na própria França: basta pensar em Sir Thomas Beecham, Colin Davis, Janet Baker ou Felicity Lott.
Mark Padmore, na primeira parte, escolheu melodias de Fauré e Reynaldo Hahn, todas com poemas de Verlaine. A voz de Padmore fascina: seu registro superior é admirável de timbre, que ele ilumina ou escurece com uma convicção espantosa. Começou com Mandoline e En sourdine, de Fauré: as nuanças desta última pareciam infinitas. A beleza do som não vem nunca sem a carga de emoção adequada ao texto. Escolheu cinco, das Sept chansons grises, de Reynaldo Hahn, e logo a primeira, os célebres Sanglots longs... de Verlaine, foram expressos com um sentido que compartilhava, com a mesma presença, texto e música. Tudo seguiu no tom de devaneio encantado e levemente melancólico, desabrochando com delicadeza e calma na alta tessitura: como ele pronunciou O bien aimée, ou Rêvons, na conhecida L’heure exquise! Foi excelente comparar a Mandoline de Hahn com a de Fauré – no último, as palavras adquirem um impulso lírico, no primeiro, elas se deixam levar por um sentimento de melancolia. Essa primeira parte se concluiu com o ciclo La bonne chanson, de Fauré, interpretadas com as mesmas grandes qualidades.
Se a primeira parte foi excelente, a segunda foi propriamente estupenda. Padmore escolheu compositores ingleses e americanos e, nessas obras, revelou a mais intensa e profunda expressão.
Ofereceu, com um rigor exaltando a emoção, textos que iniciaram trazendo veemente denúncia social: Who are these children, de Benjamin Britten, o apelo enlouquecido dos humildes: Bessie Bobtail, de Samuel Barber, a espécie de terrível mini cantata Channel firing, de Gerald Finzi, sobre a insanidade da guerra.
Depois, algumas canções elegíacas: Silent, de Ralph Vaughan Williams, sobre poema de Dante Gabriele Rossetti; The Housatonic at Stockbridge, três espantosos minutos de invenção musical por Charles Ives; o amor até a morte, com The seal man, de Rebecca Clarke.
Seguiram-se três canções sobre textos elisabetanos: Full Fathon Five, de A tempestade, de Shakespeare, escrita por Michael Tippett; Sleep, de Ivor Gurney, sobre texto de John Fletcher; Fear no more, de Cymbeline, composta por Gerald Finzi.
Enfim, esse conjunto concluiu-se com Betegeuse, de Holst, misteriosamente galáctica, três canções de Britten, e um bis com À Chloris, de Reynaldo Hahn.
O pianista acompanhador, Simon Lepper, contribuiu essencialmente para a beleza do recital: toque cor de pérola, sentido pleno da fusão com o cantor: um excelente sucessor do grande Gerald Moore – justamente, ele recebeu o Gerald Moore Award no ano 2000.
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Enfim, Cosi fan tutte, na Opera Vlaanderen, dia 10 de fevereiro, em Antuérpia: um nível que só atingem as grandes cenas internacionais.
A montagem foi da coreógrafa Anne Teresa De Keersmaeker, num espetáculo importado da Ópera de Paris. Sua escolha foi de um grande despojamento: apenas grandes linhas geométricas no solo branco, círculos, ângulos.
Cada personagem tem um duplo, um bailarino, ou bailarina, que imita, comenta com gestos graciosos, requintado, gestos e emoções dos cantores. Os traçados no solo servem para guiar, aproximadamente, os deslocamentos. Algumas vezes, isso funciona bem, outras menos, talvez porque a qualidade da música e dos intérpretes façam esquecer todo o resto.
A dupla Katharina Persicke e Anna Pennisi encarnou Fiordiligi e Dorabella de maneira perfeitamente integrada, secundadas por uma Despina adorável, Hanne Roos. Reinoud Van Mechelen e Edwin Crossley-Mercer são perfeitos Ferrando e Guglielmo, e Damien Pass é o mestre das manipulações, Don Alfonso.
São vozes de grande qualidade, mas o aspecto admirável se situa além disso: ele se dá na fusão plena do todo, na revelação de um Mozart delicado, melancólico e complexo ao mesmo tempo. A sensação de momento miraculoso veio da extraordinária regência de Trevor Pinnock, integrando tudo num conjunto que parecia tocado pela graça das musas.
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