O Brasil precisou ser varrido por uma pandemia para descobrir que a ópera pode ser nacional e contemporânea. Foi assim no Festival Amazonas de Ópera, de Manaus, no primeiro semestre. Será assim no Theatro São Pedro, em São Paulo, no ano que vem. E acabou de ser assim no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, com Viramundo, uma Ópera Contemporânea, estreada na última terça-feira, dia 21.
Sim, no Palácio das Artes! A casa tem meio século de uma história firmemente ancorada na ópera, e de modo igualmente firme ligada à encenação dos blockbusters do gênero. Contudo, em 2021, o grande empenho do Palácio das Artes não foi em levar à cena um título consagrado de Verdi ou Puccini. Foi o Ateliê de Criação: Dramaturgia e Processos Criativos.
Com curadoria do maestro Gabriel Rhein-Schirato e da diretora cênica Livia Sabag, o ateliê foi destinado a profissionais interessados no universo da ópera, teve uma série de atividades online entre agosto e novembro, entre aulas teóricas, debates e palestras – uma delas ministrada por ninguém menos do que o icônico diretor americano Peter Sellars.
Pois bem: dentre os participantes do evento, foram selecionados cinco que, sob a orientação do poeta Geraldo Carneiro, escreveram, para compositores previamente escolhidos pelo ateliê, os textos das óperas curtas que integram Viramundo. O ponto de partida foi o romance O Grande Mentecapto (1979), do escritor mineiro Fernando Sabino (1923-2004), que narra as peripécias de Geraldo Viramundo – uma espécie de Dom Quixote brasileiro. Não havia o compromisso de se adaptar literalmente a obra de Sabino, nem de que as óperas funcionassem em relação de complementaridade: cada uma é como um espetáculo fechado.
Coube então à diretora Rita Clemente e a Schirato a tarefa de, em pouco tempo, não apenas colocar de pé, como elaborar um todo coerente a partir de criações deliberadamente díspares. Com poucos elementos cênicos, como um praticável circular e painéis, Clemente apostou sobretudo na constante movimentação cênica.
E movimentação – embora invisível ao espectador – também ocorria no fosso da orquestra. Os músicos da Sinfônica de Minas Gerais revezavam-se a cada nova ópera. Contudo, para além das grandes diferenças na estética de cada compositor, não se sentiu variação de sonoridade. Em geral, fala-se muito – e não injustificadamente – da “preguiça” e resistência de integrantes de orquestras institucionalizadas em tocarem música nova; em Belo Horizonte, porém, os instrumentistas obviamente “compraram” a ideia e “vestiram a camisa” e, em conjunto com Schirato, impregnaram alma em cada uma das partituras que tiveram diante de si.
Tudo começou com Os Circunvagantes, em que Mauricio de Bonis despe a orquestra de violinos e violas para obter um colorido escuro. A música começa com uma homenagem a Stravinsky (alusões a Petruchka e História do Soldado), mas passa bem longe de ser “passadista” ou tonal. Três tenores são três palhaços, ensaiando uma adaptação de O Grande Mentecapto, e o libreto de Luiz Eduardo Frin – para além de um coloquialismo e sotaque “mineirês” que pode ser identificado também nas outras óperas – reage com vigor ao contexto contemporâneo, com uma descrição particularmente veemente do Desastre de Mariana, em 2015.
Não gosto de corpo acostumado, com música de Denise Garcia, e libreto de Djalma Thürler, e Viramundo, Viraflor, de Antonio Ribeiro, a partir de texto de Julianno Mendes, apostam mais na escrita coral – um octeto, devido às restrições da pandemia. Em Garcia, vale destacar as belas evocações de cantos de pássaro e do episódio do trem que Viramundo faz parar em sua cidade, no início do livro de Sabino. Já Ribeiro revela sua maestria na escrita para o coro, realizando quase uma cena de oratório – uma paixão de Viramundo, cuja memória é evocada pelos personagens que vão colocar flores em sua lápide.
Pois, entre a criação de Garcia e a de Ribeiro, houve justamente As três mortes de Geraldo Viramundo, de André Mehmari, com libreto de Ricardo Severo. Não parece despropositado afirmar que Mehmari compôs uma das mais belas e inspiradas partes de tenor do repertório brasileiro, e aí vale destacar a grande estrela vocal da noite: Giovanni Tristacci, cujo timbre de tenor lírico, rico em harmônicos, ressoou gloriosamente pela sala enorme (e de acústica ingrata) do Palácio das Artes. Tristacci cativou ainda pela versatilidade: não são muitos que, tendo um brevíssimo espaço de tempo para fazer a transição entre um e outro, conseguem navegar com igual compreensão do estilo e entrega em universos tão diferentes como a dos antípodas Mehmari e de Bonis.
Na ordem em que as óperas foram encadeadas, o último espetáculo, O Julgamento, da dupla feminina Thais Montanari (música) e Bruna Tamerlão (texto) soou como uma espécie de Juízo Final de Viramundo. Confesso que, dos cinco compositores escolhidos para a empreitada, Montanari era o único nome que eu não conhecia. Jovem mineira, fazendo doutorado em composição e criação sonora da Universidade de Montreal (Canadá), ela concebeu a orquestra como a condutora de sua narrativa, com uma paleta ricamente sugestiva em seu uso imaginativo de cores, efeitos e texturas.
E a reação do público a tanta novidade? Não poderia ter sido mais calorosa. Tanto que, para o ano que vem, o Palácio das Artes já promete reprisar o título. Realmente seria uma pena que a primeira audição dessas óperas coincidisse com a última, e que tamanho empenho ficasse restrito a uma única récita.
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