Paulo Mendes da Rocha, cenógrafo de ópera

por Luciana Medeiros 24/05/2021

Uma lembrança do grande arquiteto brasileiro, morto no domingo, dia 23, em passagem pelo Theatro Municipal do Rio

Meninos, eu vi. Eu estava no Municipal do Rio de Janeiro em 1995, como assessora de imprensa, quando um senhor bigodudo e simpático apareceu na primeira reunião convocada por Emilio Kalil para a produção de Il trittico, de Puccini.

As três óperas seriam montadas em julho daquele ano, replicando a produção do Municipal paulista em 1992, quando estava também sob a direção de Kalil – trazidas à cena no Brasil, em conjunto, pela primeira vez desde 1919. E o senhor bigodudo, o cenógrafo que concebera os ambientes para as três óperas, era ninguém menos que Paulo Mendes da Rocha.

Representante do brutalismo na arquitetura, Mendes da Rocha havia topado aquele convite de Kalil em 1990, quando uma das três óperas, Suor Angelica, havia estreado em São Paulo – o painel central desse tríptico, que pode ser visto como uma passagem entre a escuridão profunda de Il Tabarro à luminosidade de Gianni Schicchi

Há quem diga que Puccini concebera inferno, purgatório e paraíso nessa sequência. Ali, o arquiteto que ganharia o Pritzker em 2006 imergiu pela primeira vez na criação cenográfica. Há uma tese detalhada de Fernanda Silva sobre o assunto, para quem quiser se aprofundar.

Recebido com as honras que merecia, Mendes da Rocha começou o trabalho com a equipe técnica. E, a bem da verdade, a técnica estranhou. Habituados com a expertise dos especialistas na ilusão teatral, foram surpreendidos com certas exigências do trabalho que buscava mesmo o estrutural mais pesado. Aqui falamos especialmente da Angelica de Bia Lessa. 

O vetusto teatro carioca, aos 86 anos de idade, ainda mantinha seus equipamentos originais em boas condições. As pontes – espécie de elevadores horizontais, “fatias” do palco que sobem e descem – eram movimentadas manualmente; o fosso era erguido (e baixado) por mecanismo hidráulico. O maquinário belíssimo era de ferro pesado. Tinham freios poderosos. Eram muito seguros. Tudo subia e descia com eficiência, inclusive as pesadas cortinas.

Cena de 'Suor Angelica', com cenário de Paulo Mendes da Rocha [Divulgação/Bruno Veiga]
Cena de 'Suor Angelica', com cenário de Paulo Mendes da Rocha [Divulgação/Bruno Veiga]

Lembro bem que os cenários de Paulo Mendes da Rocha chegaram causando espanto à equipe técnica – gente cascuda, no melhor sentido da palavra, acostumada a dar conta de ideias mirabolantes. A questão, resmungavam alguns, “é que arquiteto acha que ferro é ferro, pedra é pedra e que aço é aço”. Exagero, claro, mas fazia sentido. O cenário de Suor Angelica pedia o palco desnivelado e também exigia a montagem de andaimes do lado de fora, nas coxias – as laterais da cena –, sustentando as paredes que figurantes escalavam. Era uma metáfora forte na história da freira transbordante de culpa. No final, dezenas de crianças nuas (opa, depois a nudez foi proibida pelo Juizado de Menores...) surgiam, correndo, do fundo do palco rebaixado em mais de dois metros. 

Elevadores, andaimes, cantores líricos, crianças, acrobatas... muitas questões tiveram de ser equacionadas. A lembrança do trabalho no Municipal do Rio com Paulo Mendes da Rocha pode até provocar um arrepio na equipe técnica do teatro. Mas a figura, para quem o conheceu ali, era afetuosa, e o resultado foi muito impactante. A minha memória guarda a montagem em detalhes e ainda hoje posso buscar trechos inteiros daquele Trittico.

Em ópera, Mendes da Rocha assinou ainda o cenário da Ópera dos 500 anos, com direção de Naum Alves de Souza, no Municipal de São Paulo, e Cavalleria Rusticana e I Pagliacci no Rio, em 1997, com Bia Lessa.

Seu último trabalho em cenografia foi mais uma vez com Bia, em Grande Sertão: Veredas, de 2017, pelo qual foi premiado com o prêmio da APCA. Na parceria com Bia, tinha criado também O homem sem qualidades e Futebol, os dois em 1994. Ele morreu nesse domingo, dia 23, aos 92 anos, em consequência de um câncer de pulmão.

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Cena de 'Suor Angelica', com cenário de Paulo Mendes da Rocha [Divulgação/Bruno Veiga]
Cena de 'Suor Angelica', com cenário de Paulo Mendes da Rocha [Divulgação/Bruno Veiga]

 

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