Nos tempos neoliberais que vivemos, seria altamente desejável que as autoridades governamentais mirassem o exemplo desta ação do austero e responsável governador Mário Covas
Na próxima terça-feira, dia 9 de julho, completam-se 25 anos da inauguração da Sala São Paulo. Sob direção de seu regente titular Thierry Fischer, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo subirá ao palco para interpretar a Sinfonia nº 2, Ressurreição, de Gustav Mahler, mesma obra apresentada na abertura da sala, em 1999, então sob direção do maestro John Neschling, um dos principais responsáveis por aquela conquista.
A Sala São Paulo é o marco simbólico da revolução que o governo do estado, dirigido por Mário Covas, promoveu na atividade musical clássica brasileira. Ela se iniciou em 1996, com a ambiciosa reestruturação da Osesp, e foi concluída em 2005 com a criação da Fundação Osesp, uma organização social sem fins lucrativos, que a partir dali assumiu a gestão da orquestra e da sala. Essa revolução proporcionou uma inédita difusão da atividade clássica em São Paulo e no Brasil, com excelência artística, uma espetacular agenda de concertos, a democratização do acesso, a formação de novos públicos, uma academia para jovens talentos, programas educacionais, turnês internacionais, centro de documentação e editora, divulgação e gravações de repertório brasileiro e muito mais.
Em 1996, a situação da Osesp era desastrosa. Sem nenhuma atenção ou apoio por parte do governo, a orquestra se apresentava no Auditório Símon Bolivar do Memorial da América Latina
Em 1996, a situação da Osesp era desastrosa. Sem nenhuma atenção ou apoio por parte do governo, a orquestra, dirigida pelo já octogenário maestro Eleazar de Carvalho, se apresentava no Auditório Símon Bolivar do Memorial da América Latina, um espaço absolutamente inadequado para a música sinfônica. Em sua última entrevista, publicada na Revista CONCERTO em julho de 1996, Eleazar afirmou, resignado: “[A orquestra está] em grandes dificuldades. Os ordenados são muito baixos e os músicos procuram outros trabalhos para complementar o seu orçamento. Duas horas de gravação rendem mais que um mês de salário. Eles tocam em velório, casamento, pizzaria, sem qualidade. Na orquestra, onde é necessário ter um som apropriado para cada obra, ficam displicentes, sem articulação, sem pontuação, fraseado ou dinâmica para uma boa execução”.
Eleazar de Carvalho faleceu em setembro de 1996. Em novembro daquele ano, a Revista CONCERTO publicava uma nota que dizia que o maestro John Neschling era o mais forte candidato à sucessão de Eleazar. A notícia pontuava que “o novo maestro, quem quer que seja, terá muito trabalho: a Osesp, além de todos os problemas crônicos de uma orquestra brasileira, ainda tem o agravante de não ter casa própria”.
No mês seguinte, em dezembro de 1996, o jornal O Estado de S. Paulo afirmava que o governador Covas havia anunciado que o Memorial da América Latina seria a nova sede da Osesp. A nota dizia ainda: “O secretário Marcos Mendonça contou que o maestro John Neschling, que ainda não disse sim ao convite para dirigir a orquestra, desembarca dia 16, trazendo com ele Chris Blair, da empresa americana Artec, considerado a maior sumidade em acústica do mundo. Ele vai ver o que dá para fazer com o Memorial”.
O especialista da Artec viu que não dava para fazer nada com o Memorial e descartou a ideia. Antes de tomar o avião de volta, contudo, foi conhecer a antiga Estação Júlio Prestes, uma sugestão do engenheiro Mario Garcia, amigo de Covas. Chris Blair ficou entusiasmado com o que viu e recomendou o grande hall da antiga estação ferroviária, que teria as dimensões e proporções ideais para uma sala de concertos. Ali no grande hall, em março de 1997, em um evento oficial que reuniu o governador Mário Covas, o secretário Marcos Mendonça e mais de mil convidados, a Osesp se apresentou sob regência do maestro John Neschling: estava lançado o projeto da futura sede da orquestra, então chamada Sala Júlio Prestes.
Foi o maestro John Neschling quem deu régua e compasso para a reestruturação da Osesp e para a construção da primeira sede da história da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo
Foi o maestro John Neschling quem deu régua e compasso para a reestruturação da Osesp e para a construção da primeira sede da história da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. Neschling havia assumido a direção da Osesp em janeiro de 1997, já com a proposta de criar uma instituição nos moldes das grandes orquestras internacionais. E obteve respaldo a essa ideia na Secretaria da Cultura comandada por Marcos Mendonça, como contou em entrevista à Revista CONCERTO em abril daquele ano: “Desta vez encontrei a Secretaria e o governo estaduais extremamente modificados no sentido de estarem dispostos a assumir compromissos. Eu coloquei parâmetros muito altos e não pretendo baixá-los. Mas percebi que os parâmetros da Secretaria eram tão altos quanto os meus. Houve presteza, rapidez e eficiência. Desta vez a Secretaria e o governo honraram ipsis litteris aquilo que havíamos combinado no início das nossas conversações, e de forma muito eficaz, muito rápida. É só ver o que fizemos nestes últimos dois meses, um tempo relativamente curto para um contrato deste porte, com exigências como sala condigna, salários triplicados etc.”
Não foram poucos e nem pequenos os desafios e os percalços. Na nova estrutura, músicos trabalhariam em período integral com rigorosa agenda de ensaios e concertos, e com uma remuneração inédita para os padrões brasileiros. Todos os integrantes da orquestra tiveram de se submeter a audições, que foram realizadas em junho daquele ano. Após essa etapa, para completar o quadro de instrumentistas, 66 vagas foram abertas para audições de novos músicos.
Sob direção de Neschling, a nova Osesp estreou em 12 de setembro de 1997 no Memorial da América Latina, em apresentação que teve como solista o violoncelista Antonio Meneses. Com 83 músicos, dos quais 16 instrumentistas de cordas convidados do leste europeu, a Osesp apresentou um concerto histórico para a vida cultural brasileira. “Uma grande noite, um momento de consagração para uma geração de músicos e amantes da música que já não mais imaginava ouvir um dia uma orquestra brasileira tocando com este profissionalismo”, afirmava a nota publicada então na Revista CONCERTO.
Era um prenúncio da espetacular direção artística que John Neschling levaria a cabo depois na Sala São Paulo, que consolidou a excelência da Osesp e repercutiu no mundo inteiro
Enquanto avançavam as obras na Sala São Paulo, a Osesp tocava no Memorial da América Latina e, a partir de março de 1998, no restaurado Theatro São Pedro. Ali, naquele ano, a Osesp já apresentou uma agenda impressionante, com cerca de 80 concertos e um renovado repertório com destaque para a música brasileira. Era um prenúncio da espetacular direção artística que John Neschling levaria a cabo depois na Sala São Paulo, que consolidou a excelência da Osesp e repercutiu no mundo inteiro.
Conforme divulgado na época, o custo para a construção da Sala São Paulo foi de R$ 45 milhões. O espaço está situado dentro da Estação Júlio Prestes, projetada pelo arquiteto Christiano Stockler das Neves e finalizada em 1938. O projeto de restauro e a construção da Sala São Paulo foram conduzidos pelo arquiteto Nelson Dupré. O projeto acústico foi desenhado pela Artec (que hoje se chama Arup) com a colaboração do consultor acústico José Augusto Nepomuceno. Participaram ainda da construção o arquiteto Ismael Solé, o engenheiro de som e maestro Christopher Blair e o engenheiro Bernard Baudouin, da Akustiks.
Inicialmente prevista para dezembro de 1998, a inauguração da Sala São Paulo ocorreu finalmente em julho de 1999. A abertura reuniu autoridades de todas as esferas e escalões – secretários, deputados, governador, ministros e até o presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. Eu consegui um dos disputados convites e assisti ao concerto. Foi o máximo! Não vou me esquecer do maestro Neschling vibrando após o concerto, dando socos no ar, como se fosse um jogador de futebol depois da conquista da copa do mundo.
Desde a inauguração da Sala São Paulo, a Osesp desenvolveu seguramente a mais consistente e brilhante trajetória de uma sinfônica brasileira em todos os tempos.
Mas a revolução encerrou-se apenas alguns anos depois, em 2005, com a celebração do primeiro contrato de gestão da secretaria com a Fundação Osesp, uma Organização Social de Cultura
Mas a revolução empreendida pela ação política do governo do estado de São Paulo encerrou-se apenas alguns anos depois, em 2005, com a celebração do primeiro contrato de gestão da secretaria com a Fundação Osesp, uma Organização Social de cultura. A Osesp e a Sala São Paulo foram dos primeiros equipamentos da Secretaria de Cultura que passaram a ser administrados pelo modelo de Organizações Sociais, uma parceria público privada que estabeleceu um novo paradigma para a gestão de órgãos públicos da cultura no Brasil.
A Osesp e a Sala São Paulo são fruto de uma vitoriosa política pública implementada pelo governo Mário Covas por meio de seu secretário Marcos Mendonça, aliada ao espírito visionário, à habilidade empreendedora e ao talento artístico do maestro John Neschling.
Nos tempos neoliberais que vivemos, em que até mesmo ações de promoção social são reduzidas a frias planilhas orçamentárias, seria altamente desejável que as autoridades governamentais mirassem o exemplo desta ação do austero e responsável governador Mário Covas.
Se há uma saída para os desafios que a nossa civilização enfrenta – das guerras à mudança climática –, ela seguramente passa pela valorização e priorização da cultura humanista.
Viva a Osesp! Viva a Sala São Paulo!
[Texto editado em 12/07 para a inclusão do nome do engenheiro Mario Garcia, que foi quem sugeriu a Estação Júlio Prestes.]
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Comentários
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Bravo, Nelson!! Linda…
Bravo, Nelson!!
Linda homenagem, justíssimas menções honrosas e perfeitas e conscientes colocações políticas! Belo texto!
E siiim, VIVA A OSESP e VIVA A SALA SÃO PAULO!! :D