Callas, mais do que uma mulher fadada ao sacrifício

por Ligiana Costa 21/10/2024

Filme de Pablo Larraín repete fórmula desgastada, com Angelina Jolie em atuação monótona, apresentando uma Callas abatida e melancólica, longe da intensidade teatral e física que caracterizava a soprano

 

“Ao escrever de si mesma, a mulher retornará ao corpo que lhe foi mais do que confiscado, que foi transformado na estranha figura exposta – a figura doente ou morta, que tantas vezes acaba sendo a companheira desagradável, a causa e o local de inibições. Censurar o corpo é censurar o fôlego e a fala ao mesmo tempo. Escreva-se. Seu corpo deve ser ouvido”
Hélène Cixous

O filme Maria – intitulado Maria Callas no Brasil –, dirigido por Pablo Larraín e protagonizado por Angelina Jolie, abriu a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. A exibição inaugural para convidados ocorreu na Sala São Paulo, e o filme seguirá em cartaz por alguns dias. Maria Callas encerra uma trilogia do diretor chileno dedicada a mulheres icônicas e atormentadas, composta por Spencer (2021), em torno da princesa Diana, e Jackie (2016), sobre Jackie Kennedy. Todos os filmes desta trilogia focam em momentos específicos de grande melancolia das personagens históricas e suas dramaturgias se constroem a partir de delírios, sonhos ou criações surreais. Mesmo consciente de tal recorte e procedimento dramatúrgico, saí da exibição extremamente incomodada.

A primeira pergunta que ecoou em minha mente foi: até quando Callas será representada apenas em seu declínio e morte? Não haverá algo que nos interesse mais em seu legado que seu fim? Ou será que Callas, inevitavelmente, carregará consigo, como um sísifo perpétuo, a carga de todas as mulheres caídas da ópera? 

O grande cânone operístico, especialmente no século XIX e início do XX, construiu-se em torno da morte espetacular e melodramática da protagonista feminina; disso dá conta o livro clássico de Catherine Clément mas também toda a literatura da musicologia feminista como os estudos de Susan McClary, Ellen Rosand ou Carolyn Abbate. A vida de Callas, e em especial sua morte, frequentemente é associada às heroínas que interpretou no palco, como num loop de “a vida imita a arte que imita a vida”. A morte da mulher-Callas é constantemente encenada e revisitada, como se o mito da mulher que morre de coração partido tivesse mais apelo que a narrativa de suas conquistas como artista, criadora e renovadora do gênero operístico. 

De fato, a vida de Callas tem muito em comum com heroínas como Violetta: abusos, abandono, o controle patriarcal, o corpo a serviço dos outros (homens), a morte precoce. No romance de Alexandre Dumas Filho que dá origem ao libreto de La Traviata, o jovem amante faz reabrir o caixão em que se encontra o corpo de Marguerite, a dama das camélias, para observar o corpo antes desejado, agora em decomposição. Um estranho e misógino gozo, repetido tantas vezes em outros romances ao ponto de se tornar um topos literário. É um pouco esta a sensação que tenho com as tantas visitas encenadas ao fatídico quarto mortuário de Callas.

Os momentos em que Callas-Jolie aparece interpretando cenas operísticas seguem sempre o mesmo padrão: a cantora tenta ensaiar uma ária, falha ao cantar e é transportada de volta ao seu passado glorioso nos grandes palcos

Em seu recente estudo, Callas e os seus Duplos, o musicólogo e filósofo João Pedro Cachopo analisa a persistência do mito de Callas no século XXI em documentários, exposições, assustadores concertos com holograma, estudos analíticos e biografias (como a recente e pesadíssima de Lyndsy Spence, que certamente inspirou o filme em questão). Como ele pontua, “Callas transformou a história da ópera, impulsionando a redescoberta do bel canto e o estilhaçamento das fronteiras entre repertórios e registros”, um legado que ecoa muito além do universo operístico. No entanto, nas representações cinematográficas, a Callas profissional, a artista disciplinada e ousada, é sistematicamente apagada. O cotidiano de sua dedicação, o rigor do seu treino vocal e cênico, suas relações de trabalho – tudo isso permanece ausente. O fascínio em torno de Callas, observa Cachopo, “prende-se à indissociabilidade, no imaginário coletivo, entre a mulher e a artista”. Mas por que, me pergunto, há tanto espaço para a dura vida íntima da mulher e tão pouco para a potência da artista?

O filme de Larraín, infelizmente, repete essa fórmula desgastada. A atuação de Jolie é monótona, apresentando uma Callas abatida e melancólica, longe da intensidade teatral e física que caracterizava a soprano. O que temos no filme é uma Callas sem tônus, uma figura irritante, entre a busca da voz perdida e reencontros com a própria memória. Os momentos em que Callas-Jolie aparece interpretando cenas operísticas seguem sempre o mesmo padrão: a cantora tenta ensaiar uma ária, falha ao cantar e é transportada de volta ao seu passado glorioso nos grandes palcos. Nesses momentos, a atuação de Jolie se torna ainda mais frustrante, pois falta-lhe o pathos e a ampla gama de afetos que a soprano cultivava. Jolie parece excessivamente preocupada em manter-se bela diante da câmera, traindo assim a essência de Callas, que não hesitava em parecer grotesca em cena – olhos arregalados de terror, sobrancelhas arqueadas, boca distorcida – e nem em fazer sua voz soar desagradável, conforme o efeito dramático que Verdi, por exemplo, exigia para sua Lady Macbeth.

Em um dos elementos mais caricatos do filme, Larraín e seu roteirista criam uma entrevista alucinatória com um personagem chamado Mandrax – uma alusão explícita ao medicamento que contribuiu para a morte de Callas. Essa tentativa de poesia trágica se transforma num clichê de mau gosto, uma alegoria óbvia e sem sutileza. A pretensão poética do filme é enorme – coros na rua, orquestras na chuva – mas tudo é tão estereotipado que só faltava o filme terminar com um “Va pensiero” (me perdoem o spoiler!).

Ainda sonho com um filme que celebre as conquistas desta artista que promoveu uma divisão de águas na práxis e até mesmo nos estudos operísticos

Ao comparar com outras produções que também se concentram nos últimos dias de Callas, como Callas Forever, do encenador de óperas e cineasta Franco Zeffirelli, noto uma diferença significativa. Fanny Ardant, que também interpretou Callas na peça Masterclass, captura uma Callas mais complexa, diversa, sem perder de vista sua dimensão artística. A peça de Terence McNally, encenada brilhantemente no Brasil por Marília Pêra com direção de Jorge Takla, é talvez o mais interessante dos “produtos dramatúrgicos callassianos”, pois nos oferece um vislumbre da Callas mestra, artista, musicista rigorosa.

Em 2020, Marina Abramovic estreou 7 Deaths of Maria Callas, que também explora a morte da diva a partir das personagens que encarnou (o cenário era, assim como no filme de Larraín, uma reprodução perfeita de seu quarto na famosa rua Georges Mandel). Mais uma vez, o foco está na morte e no sacrifício desta mulher, aqui a serviço da criação da performer que se auto retrata em vídeo como as personagens de fins trágicos. 

Ainda sonho com um filme que celebre as conquistas desta artista que promoveu uma divisão de águas na práxis e até mesmo nos estudos operísticos. Quero ver sua formação com Elvira de Hidalgo, sua relação em set de filmagem com Pasolini, seus diálogos com Tulio Serafin ou Zeffirelli. Quero ver a artista em seu auge, descobrindo partituras esquecidas, reimaginando o bel canto, chegando fresca em Gluck, Cherubini ou Bellini. Sonho com um filme assim porque Callas foi mais do que uma mulher fadada ao sacrifício. Ela foi uma força transformadora do gênero, e é essa história que merece ser contada. Não é à toa que Casta Diva, a ária de Norma, seja a ária que mais diretamente nos remete a Maria Callas. Norma, a sacerdotisa que ao pronunciar o nome da vítima a ser sacrificada pronuncia o próprio nome e morre em chamas. Talvez seja hora de tirarmos Callas – e muitas de nós -  deste altar sacrificial.

[O filme terá mais duas sessões na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo; no dia 23/10, às 17h10, no Cinesystem Frei Caneca 1; e, no dia 27, às 19h10, no Reserva Cultural - Sala 2]

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Angelina Jolie em cena do filme 'Maria Callas' [Divulgação]
Angelina Jolie em cena do filme 'Maria Callas' [Divulgação]

 

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Comentários

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Excelente texto com argumentos robustos sobre a dívida que ainda temos com Callas . Uma leitura feminista bem fundamentada que alerta sobre as pistas deixadas pelo patriarcado no processo criativo.

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