Há dez anos, a organista Elisa Freixo vive em Tiradentes. Isso porque a cidade guarda um dos mais preciosos instrumentos musicais remanescentes de Minas colonial, o órgão da Matriz de Santo Antônio. Construído na cidade do Porto pelo organeiro português Simão Fernandes Coutinho, ele foi inaugurado em 1788.
Há mais de 30 anos, na verdade, ela vive na região – desde que, pouco depois de retornar dos estudos na Europa, mudou-se para Mariana e se tornou a organista oficial da Sé. Construído em 1701 em Hamburgo por Arp Schnitger (1648-1719), um dos nomes mais respeitados na história da fabricação deste tipo de instrumento, o órgão da Sé de Mariana chegou ao Brasil em 1753. Na década de 1980, foi enviado a Hamburgo para uma restauração – e Elisa chegou a conhecê-lo na Europa, enquanto estudava por lá.
Da mesma forma, após séculos de atividade, o órgão de Tiradentes se calou durante vários anos, até passar por um processo completo de restauro, em 2009, supervisionado pela própria Elisa e financiado pela paróquia, pela comunidade e por patrocinadores. Mas trazer o instrumento (que, decorado em estilo rococó, mantém partes significativas dos tubos e mecânica originais, além do teclado) de volta à vida era só o início. Uma restauração desse porte só faria sentido se o órgão voltasse a fazer parte não apenas da vida eclesiástica da comunidade, mas também se inserisse na vida cultural da cidade de Tiradentes, hoje um ponto turístico importante e bastante preservado.
Acreditando de corpo e alma que o instrumento – sobretudo depois do dinheiro investido em sua recuperação – deve servir àquilo a que se destina, Elisa mudou-se para a cidade de Tiradentes e, uma vez por semana, às sextas-feiras, realiza concertos de órgão, frequentemente acompanhada de outros instrumentistas e cantores. Às vezes, promove apresentações de outros organistas, incluindo grandes nomes internacionais do instrumento.
Pude assistir ao concerto do dia 21 de junho, no feriado de Corpus Christi, cuja convidada foi a soprano Marília Vargas. Mais de 200 pessoas lotaram a centenária igreja – projetada no início do século XVIII e com esculturas na fachada esculpidas por Aleijadinho – para ouvir Elisa Freixo e Marília Vargas em peças do século XVIII de Bach, Händel e Mozart, entre outros.
Bastante à vontade e contente, Marília traduzia o texto antes de cada peça, da mesma forma que Elisa introduzia as peças a serem tocadas para os turistas, que formavam a maior parte do público. “Para mim, cantar na Matriz de Tiradentes é sempre especial. A acústica da igreja é muito gratificante, e o som do órgão histórico nos envolve de forma única”, afirma a soprano.
Elisa Freixo realiza a série de forma independente, e o projeto acontece ininterruptamente desde a reinauguração do órgão e sem nenhum tipo de patrocínio, sobrevivendo exclusivamente do que é arrecadado com os ingressos. Uma plateia atenta – e que atendeu aos pedidos da organista de só aplaudir ao final – acompanhou o concerto no dia 21. Houve sintonia total entre as duas artistas, mostrando que a voz e o órgão se dão muitíssimo bem – acompanhar a voz, aliás, foi historicamente uma das principais funções do órgão.
O melhor da noite foi a ária “Schlummert ein, ihr matten Augen”, da Cantata 82 de Bach – em alguns momentos em que órgão estava na mesma altura da voz, era como se os timbres se fundissem e um som poderoso nos invadisse internamente, ambos em perfeita vibração, numa sensação que se refletia fisicamente.
Ainda que não fosse capaz de explicar a sensação, o público certamente não ficou imune a essa comunhão de sons. “Em sua maioria composta por pessoas que não têm o hábito ou mesmo o acesso às salas de concerto, muitas assistindo um concerto pela primeira vez em suas vidas, elas ficam completamente impactadas”, nota Marília Vargas. “Vide o silêncio impecável entre cada obra apresentada. Percebemos que muitas pessoas estão mesmo em estado de meditação, completamente concentradas. É emocionante”, completa.
Essa não foi a primeira vez que Marília participou da série de órgão na Matriz de Tiradentes e ela não poupa elogios a sua idealizadora: “Além de ser uma musicista do calibre que é, Elisa é uma verdadeira empreendedora da memória musical do Brasil. Uma defensora dos poucos instrumentos que restaram, alguém que não só colabora para que a classe política e religiosa tome consciência da importância destes instrumentos, mas que também os aproxima do público em geral e da população local” afirma. “Seu trabalho é único e de suma importância”.
De fato, Elisa Freixo, com sua fala calma e delicada, é daquelas artistas que, mais do que determinação, parecem vocacionadas às escolhas que fizeram. E que não mede esforços, colocando todo seu preparo e conhecimento em prol de uma causa à qual se entrega sem ressalvas – no caso, a preservação dos órgãos históricos brasileiros.
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