Pierre Boulez e a vanguarda institucionalizada

por Jorge Coli 26/07/2021

Bem dobradinho e amarelo, encontro um recorte de jornal dentro de um livro. Ele contém uma lista de comentários feitos por um grande nome da música do século XX a respeito de outros compositores. Alguns exemplos:

A música de Stravinsky não passa de “jogo arbitrário e gratuito para deleite do ouvido que já se perverteu”.

Shostakovitch é apenas “uma prostituta de Mahler”.

Sobre Olivier Messiaen: “seu lado puramente harmônico revulsa os mais indulgentes”.

O jazz não serviu para nada “com sua pobre e única sincopa e sua inseparável batida a quatro tempos”.

As últimas obras de Schoenberg constituem um caso de “desvio tão monstruoso quanto incompreensível”.

“Falta à música de Bartók uma coerência interna de linguagem”.

A música minimalista americana é, simplesmente, “reacionária”.

Quem exprimiu opiniões assim? Algum velho conservador, protestando contra os absurdos modernos? De forma alguma. Foi um nome que se identificou com a própria ideia de modernidade em música: Pierre Boulez.

Sem pôr em discussão suas grandes qualidades como compositor e como regente, as frases elencadas acima – e muitas outras como essas, de mesma autoria, poderiam ser acrescentadas – revelam um evidente caráter polemista que não duvida de sua autoridade.

Nesse ponto, há coerência: o campo da modernidade nas artes foi polemista – era preciso destruir a tradição conservadora. Foi também profundamente autoritário. Fora de mim não há salvação. Eu sei o que é a arte, e o que será o futuro. Eu determino o que deve ser apreciado e o que deve ser execrado. Nisso, Boulez, provocador, adorando chocar o ouvinte, entrava em plena sintonia com o clima mobilizador das vanguardas desde o início do século, que encontravam no “épater le bourgeois” – escandalizar o burguês – a confirmação de suas próprias certezas e de sua superioridade.

A carreira de Boulez coincidiu também com uma virada que lhe foi favorável: a da institucionalização das vanguardas. Isso ocorria no mundo todo, mas na França teve um momento preciso sob o governo do presidente Georges Pompidou, entre 1969 e 1974. 

[Divulgação /UWE ARENS/DEUTSCHE GRAMMOPHON]
Pierre Boulez [Divulgação /UWE ARENS/DEUTSCHE GRAMMOPHON]

Pompidou era fascinado pelas artes enquanto produto do que se concebia então como modernidade. Criou o enorme Centro Georges Pompidou, que espelhava na arquitetura de Renzo Piano a ruptura com o universo urbano à sua volta: ele se consagraria à criação nas artes plásticas. E fundou, em 1969, o IRCAM – o Instituto de coordenação e pesquisa acústica / musical – instalado diante do prédio do Centro Pompidou e tendo, à sua frente, Pierre Boulez. 

O IRCAM estimulou e possibilitou múltiplas e expressivas criações na música contemporânea. A lista de obras que propiciou inclui autores ilustríssimos, essenciais do período.

Mas ele se tornou uma sede oficial de criação. A vanguarda musical encontrara sua casa, o que é um paradoxo: ela se institucionalizava. E, nesse momento, creio que nenhum outro músico, desde Wagner, tenha gozado de tanto poder quanto Pierre Boulez.

Está claro que os músicos situados fora dessa corte, e de suas benesses, pois os orçamentos, muito generosos, drenavam grande parte do dinheiro destinado à criação musical contemporânea, não estavam felizes.

O recorte de jornal que menciono, um artigo publicado no Le Monde, dia 21 de fevereiro de 1990, é um pequeno testemunho dessa situação. Seu autor, Jean-François Zygel, professor de improvisação no Conservatório Nacional de Paris, denunciava esse estado de coisas: 75% do orçamento destinado à criação musical em todo país ia para Boulez.

Zygel protestava: “Pierre Boulez e seus discípulos representam apenas uma possibilidade e não todas as possibilidades de escrever a música hoje”.

E concluía: “Não basta martelar sem cansaço a palavra modernidade ou de diabolizar seu interlocutor, atribuindo a ele os ornamentos da reação e da incultura para justificar a validez de uma escola que não cessa de perder ouvintes, inclusive entre os músicos. É preciso lembrar: muitos jovens compositores e intérpretes não se reconhecem mais hoje nessa palavra de exclusão e de violência. Não se substitui um pensamento por uma postura, não se substitui argumentos pela invectiva, não se substitui uma sensibilidade, uma abertura artística pela repetição incansável de um dogma”.

No mesmo momento em que a modernidade se institucionalizava, entrava na crise de sua hegemonia. A expressão pós-moderno surgia então. A criação musical – e artística – contemporânea passou a tatear por outros caminhos. O velho recorte de jornal é um pequeno documento desses debates.

Quanto a Boulez, permanece na memória coletiva como o grande homem da música recente, institucionalizado na glória: a grande sala do novo prédio da Filarmônica de Paris, construída por Frank Gehry, leva seu nome. 

Naxos

Leia também
Notícias
Projeto Sinos é destaque da edição de agosto da Revista CONCERTO
Notícias Prepare-se: sete concertos e óperas para ver ao vivo ou na internet
Notícias Pauline Viardot, 200 anos: trajetória a ser redescoberta
Notícias Osusp volta ao Anfiteatro Camargo Guarnieri e anuncia programação
 

Curtir

Comentários

Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.

É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.