Saudades de uma Guanabara (mais) musical

por Luciana Medeiros 12/05/2021

Estreia da Sala Jazz na Cecilia Meireles traz a nostalgia de um Rio de Janeiro com muitos palcos

A programação da Sala Cecilia Meireles traz, essa semana, a estreia da sua Série Jazz 2021 com a PianOrquestra: os pianistas Claudio Dauelsberg, Verónica Fernandes, Nathália Martins, Matheus Kern e a percussão de Mako apresentam um repertório que vai de Villa-Lobos e Gnattali a Michael Jackson e Lennon&McCartney, passando por composições próprias e canções da MPB. É um projeto diferente, que existe desde 2003, que traz os instrumentistas tocando a dez mãos num só piano.

Inspirado no piano expandido de John Cage, o grupo tem uma proposta experimental e lúdica, que agora volta a ter a presença de público (a apresentação contará com plateia e terá transmissão via YouTube). 

“São cinco solos novos e um arranjo novo do tema de Star Wars”, conta Dauelsberg. “Vai ser emocionante voltar ao palco com público para aplaudir, de verdade. Fizemos em outubro de 2020 o Festival de Montreux online e era aquele silêncio, nós e as câmeras. É muito bom voltar a ter troca, contato, mesmo com todos os cuidados necessários.” O segundo evento da Série traz, no dia 21, Lívia Nestrovski e Fred Ferreira.

O mote abre espaço para falar de outro assunto, correlato. Ou talvez não seja outro: os espaços para música de performance virtuosística no Rio de Janeiro e o que significam em um arco mais aberto de opções. Em um tempo não muito longínquo, havia muita música instrumental e jazz na vida noturna da cidade. Bons drinques tinham acompanhamento da performance de grandes artistas, a maioria pouco conhecida da grande massa de consumidores, mas altamente refinados na linguagem musical. 

Para ficar só no estilo night club, a memória dos cariocas quarentões – vá lá, cinquentões ou sessentões – é de uma variedade de endereços onde se ouvia música brasileira e internacional de qualidade incontestável. Nomes como Mistura Fina, Jazzmania, Rio Jazz Club, People evocam um período florescente dos anos 1980 e 1990, que incluía os festivais de jazz, de saudosa lembrança, das irmãs Gardenberg. 

Dirão alguns que aquelas eram programações “de elite”, requerendo alto investimento e dirigidas a um público que já não existe ou mal se importa com elas. Corro um certo risco ao defender a importância desses eventos para a vida de uma cidade – a tal da “alta cultura”, expressão desagradavelmente esnobe.

Está provado: cidades marcantes, poderosas, que atraem turistas, negócios, convenções e congressos têm oferta diversificada e farta de eventos culturais. Pense em Nova York. O cardápio vai da mais popular e grandiosa manifestação, como missas gospel no Harlem, aos eventos da cultura cosmopolita – como queríamos demonstrar, ópera, música de concerto, jazz. 

Não dá para culpar a pandemia da Covid. O panorama de relativa fartura já havia mudado bem antes do trágico momento que o mundo vive. De fato, o Rio de Janeiro perdeu a vitalidade das noites musicais, das madrugadas jazzísticas, da bossa-nova requintada muito antes de 2020, em sincronia com a decadência econômica da cidade e do aumento da violência, que solaparam iniciativas e desanimaram o público. Os night clubs foram fechando um a um. O último deles, ironicamente, foi o internacional Blue Note, franquia da casa novaiorquina da tradição do jazz.

É triste. É simbólico. Não somente pela ausência em si do cosmopolitismo, mas pelo significado mais amplo dessa falta – e, na base, o desaparecimento de um mercado de trabalho e da referência de virtuosismo, refinamento, meta, a ponta de um espectro artístico de excelência. Nesse sentido, equivalem-se as casas de ópera e as casas de jazz, guardadas as proporções. São manifestações de alta habilidade artística, que requerem de seus artistas muita preparação e dedicação e que desafiam fronteiras – e que, ao menos no Rio de Janeiro, parecem se desvanecer, por falta de investimento e de estímulo ao consumo que, em última análise, as desvalorizam aos olhos do público.

A estreia da Série Jazz desse ano num dos poucos espaços da cidade com programação variada e de qualidade ao longo da pandemia pode trazer a chance de uma reflexão. Ou, no mínimo, de um momento de nostalgia daqueles tempos em que o Rio de Janeiro vibrava em acordes audaciosos e performances sublimes.

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Pianorquestra [Divulgação]
Pianorquestra [Divulgação]

 

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