[Texto escrito com Anahi Ravagnani]
Entre os dias 17 e 20 de maio deste ano, a cidade de Rotterdam, ao sul da Holanda, sediou mais uma edição do Classical:NEXT, evento que se propõe a ser um “encontro global para todos os inovadores de música artística”. Trata-se de um evento de grandes dimensões, que reúne profissionais de diferentes partes do mundo, com forte presença de representantes da Europa e da América do Norte. Ao longo de quatro dias, centenas de pessoas se desdobram para acompanhar a intensa agenda de atividades que ocorre no De Doelen, magnífico complexo arquitetônico que sedia a Filarmônica de Rotterdam, e que além de duas salas de concertos (uma sinfônica e outra de câmara), conta também com diversos espaços próprios para convenções.
Integram a agenda de atividades do Classical:NEXT uma feira de exposição, na qual dezenas de stands institucionais e privados expõe propostas, produtos e artistas (nosso país estava lá representado pela Brasil Music Exchange, em parceria com a Apex-Brasil); encontros de network, tematizados das mais diferentes maneiras; seções de project pitches, nas quais produtores e artistas apresentam seus projetos para uma seleta plateia de compradores e formadores de opinião; show cases, ou mini-concertos, nos quais músicos de diferentes partes do mundo dão um aperitivo de como estão tentando inovar sobre a tradição clássica. Soma-se a tudo isso uma intensa programação de conferências e debates, realizadas por profissionais de diferentes países e tipos de instituições. Os temas dessas seções são os mais diferentes possíveis, mas todos acabam por ter como ponto em comum o assunto que dá título ao evento: o what’s next?, ou seja, o futuro da música clássica.
Por nossa vez, instigados pelos debates em torno do presente e do futuro da música clássica brasileira – especialmente aqueles realizados no âmbito das Conferências MultiOrquestra, promovidas entre 2014-16 pelo British Council em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo – resolvemos propor à comissão julgadora do Classical:NEXT de 2017 uma sessão de conferência intitulada “O mundo como palco, o músico como ator social: limites e ações de músicos e instituições enquanto integrantes da transformação social”.
Nossa proposição baseava-se não apenas em nossas experiências, percepções e demandas oriundas das atividades por nós exercidas na cena clássica brasileira (ambos focados em projetos educacionais), mas de todos os problemas e desafios bem conhecidos por nós, e que, infelizmente, apenas se agravaram no curso dos últimos anos. Os debates promovidos em conjunto com os profissionais ingleses nas Conferências MultiOrquestra, bem como uma participação anterior de um de nós na Classical:NEXT de 2015, revelou que, apesar das imensas diferenças que existem entre nossa realidade e o contexto profissional de produção cultural de alguns países da Europa e da América do Norte, há uma série de problemas em comum no que diz respeito às estratégias de manutenção e perpetuação dessa atividade entendida como música clássica. Alguns desses problemas que motivaram nossa proposição são: como construir futuras gerações de plateias para a música clássica? Qual o papel das instituições culturais tradicionais na sociedade contemporânea?
Uma vez que o assunto “o futuro da música clássica” não é colocado como uma questão puramente filosófica, mas sim como um alerta sobre os riscos que pairam mundialmente sobre esse tipo expressão artística, “transformação” passa a ser a palavra de ordem, pois a manutenção do status quo – ou, melhor, a perpetuação da “velha ordem” – já se demonstrou catastrófica em diferentes níveis (basta lembrar que recentemente no Brasil tivemos várias orquestras e projetos clássicos simplesmente extintos por conta disso). Nesses termos, ao falarmos de transformação, implica-se, sobretudo, uma mudança de atitude dos agentes que integram o dia-a-dia da música clássica. Ou seja, uma mudança nas pessoas, e por isso uma transformação de ordem social.
Nossa atuação profissional em projetos educacionais em música clássica na grande praça cultural do país – isto é, o eixo Rio-SP –, faz com que nossas respostas para esses problemas sejam de uma natureza bem específica. Entretanto, em Rotterdam, queríamos saber que tipo de solução músicos, diretores artísticos, executivos, produtores e managers de todos os tipos, de diferentes realidades e partes do globo, poderiam elaborar para essas problemáticas em comum. Por isso, mais que uma sessão tradicional, promovemos um debate com os participantes a partir das seguintes premissas: o engajamento musical pode promover transformação social; os músicos devem desempenhar um papel social enquanto parte de suas atividades profissionais; instituições musicais tradicionais (tais como orquestras, teatros, sociedades de concerto, etc.) devem promover transformação social em suas comunidades.
Organizados em três diferentes grupos, os participantes se reuniram para elaborar respostas e ideias sobre as seguintes perguntas: que tipo de transformação social pode-se realizar por meio do engajamento em atividades musicais? Que tipo de transformação social os músicos estão preparados para realizar? Que tipo de ações as instituições musicais deveriam tomar de forma a promover transformação social?
Apesar da heterogeneidade do público – diferentes países, idiomas, atividades profissionais, faixas etárias, etc. –, ao final da rodada preliminar de debate, foi interessante constatar como muitas ideias e soluções elaboradas em separado convergiam para pontos em comum. E foi especialmente gratificante perceber que esses pontos coincidiam também com nossas próprias proposições e ideias sobre essas questões, elaboradas ao longo de nossas pesquisas e experiência cotidianas.
No que diz respeito à primeira pergunta, foi importante constatar, antes de tudo, a sua própria pertinência. Ou seja, o músico pode sim atuar como agente de transformação social por meio de seu engajamento, que deve se constituir sobretudo por seu contato com a comunidade na qual ele ou a instituição que integra esteja inserido. Em outras palavras, conjecturou-se mesmo que o futuro da música clássica passará pela ação que os músicos tomam fora do palco, ainda que jamais se possa perder de vista a qualidade e a coerência do que se faz a cada concerto. Ainda sobre este aspecto, constatou-se que a plateia precisa sentir-se parte integrante da experiência artística como um todo, de maneira que esta experiência seja de fato efetiva, crie laços autênticos de envolvimento, pertencimento e, portanto, seja capaz de promover algum tipo de transformação.
Sobre a segunda pergunta “Que tipo de transformação social os músicos estão preparados para realizar?”, uma das mais interessantes ideias veio de um grupo, que concluiu que essa pergunta sequer existiria caso as instituições trabalhassem de forma efetiva tanto na formação como na criação de condições para que os músicos possam atuar de forma engajada em suas comunidades. E assim responde-se de forma essencial à última questão: a principal ação que as instituições da música clássica devem realizar em seu compromisso e obrigação com a transformação social é a implantação de políticas e atividades que de fato promovam e incentivem o engajamento do músico junto a sua comunidade, pois é dessa comunidade que sairá a audiência futura de nossas salas de concerto, casas de ópera, concertos e afins.
Nos termos teóricos, quando possíveis soluções podem ser elaboradas de forma livre e sem freios, o futuro da música clássica parece estar garantido. Entretanto, no próprio debate ficou claro a resistência que músicos, instituições e seus trabalhadores têm em entender a necessidade de uma mudança de mentalidade, de uma ampliação de suas atividades de forma a também incluir passos fundamentais para sua existência num futuro muito próximo. Aqui no Brasil, em alguns lugares, o “curto-prazo” já chegou, entregando uma conta fatal de demissões e silêncio.