TIRADENTES (21/11) A segunda-feira, dia 21, foi dedicada à música de concerto no Artes Vertentes. Dessa vez, o palco foi uma das mais antigas igrejas da cidade, a pequena Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, de ótima acústica e construída provavelmente no início do século XVIII pela irmandade de mesmo nome.
A tradição musical germânica foi o tema de um programa extenso que se iniciou com o Quinteto para trompa e cordas de Mozart, seguiu com a Piccola oferta musicale, de Nino Rota (uma homenagem com compositor italiano à Bach) e ainda teve duas grandes obras do repertório camerístico: o Sexteto n.1 op.18 de Brahms, para cordas, e o Septeto op.20 de Beethoven, peça alegre e que tem a inusual formação de clarinete, trompa, fagote, violino, viola, violoncelo e contrabaixo.
O time que entrou em campo nessa noite deu interpretações de tirar o fôlego, vigorosas mas sem desprezar as nuances de cada obra: Cássia Lima, flauta; Alexandre Barros, oboé; Marcus Julius Lander, clarineta; Alma Liebrecht, trompa; Catherine Carignan, fagote; Alexandra Soumm e Jesús Reina, violinos; Darya Filippenko e Iberê Carvalho, violas; Robson Fonseca e Elise Pittenger, cellos; e o contrabaixista Netto Bellotto.
Vale notar que boa parte desses músicos atua na Filarmônica de Minas Gerais, o que mostra como um projeto orquestral sério pode se espraiar pela comunidade de muitas maneiras – aqui, no caso, fornecendo instrumentistas de excelente nível para colaborar com um projeto importante realizado no mesmo estado.
Vivências
O artista residente desta edição do Artes Vertentes é o escritor Ricardo Domeneck, atuante como poeta, crítico, editor e contista e que há 20 anos vive entre o Brasil e a Alemanha. Além de participar de atividades da área de literatura, Domeneck está trabalhando na criação de textos inéditos a partir do mote curatorial, bem como da vivência em Tiradentes.
Outra área artística do festival é o cinema, com filmes exibidos gratuitamente em espaços da cidade. Na terça, 22, tive tempo de conferir Pureza, filme de 2019 dirigido por Renato Barbieri. Em consonância com as discussões que permeiam a programação, Pureza é inspirado em fatos reais com excelente interpretação de Dira Paes. Pureza é uma trabalhadora pobre que sai em busca de seu filho, Abel, desaparecido ao tentar uma vida melhor no garimpo. Ao seguir seus passos, ela acaba empregada numa fazenda, onde testemunha o tratamento brutal de trabalhadores, que são aliciados com a promessa de bons salários e acabam vítimas de trabalho escravo. O final, no entanto, é alentador e revela aos espectadores a figura incrível da mulher que inspirou a trama.
O dia ainda teve atividades literárias e a exibição do documentário brasileiro Homem-peixe. À noite, a cantora baiana Virginia Rodrigues fez um show todo dedicado a canções de Tiganá Santana e Paulinho da Viola.
Acima, falei por diversas vezes de Luiz Gustavo Carvalho, pianista e diretor artístico do festival. Mas tão importante quanto o seu trabalho é o de sua companheira, a russa Maria Vragova, que ajuda a colocar a programação de pé como diretora executiva do evento.
O Festival Artes Vertentes segue com atrações até domingo, dia 27, quando se encerra na igreja matriz da cidade com a apresentação da ópera Domitila, de João Guilherme Ripper, tendo a soprano Marli Montoni no papel-título. Meu relato, no entanto, se encerra por aqui, já que não poderei acompanhar as atrações até o final. Antes de me despedir da linda cidade de Tiradentes, contudo, terei o privilégio de ouvir a soprano Eliane Coelho, acompanhada pelos músicos do festival, num concerto com obras de Ravel, Poulenc, Nino Rota e Darius Milhaud.
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TIRADENTES (19 e 20/11) A Igreja São João Evangelista, levantada em meados do século XVIII pela Irmandade de São João Evangelista dos Homens Pardos, e onde está sepultado o compositor Manoel Dias de Oliveira (c.1735-1813), tem sido o palco principal das apresentações de música erudita do Festival Artes Vertentes. No sábado, dia 19, ao meio-dia, um concerto dedicado à belle époque procurou recuperar a principal referência estética do Brasil de 1922: a cultura musical parisiense anterior à Primeira Guerra Mundial.
O programa teve início com a bela e pouco tocada Elegia para trompa e piano, obra curta e de um único movimento que Francis Poulenc escreveu em memória de um amigo trompista, com o pianista Luiz Gustavo Carvalho e a trompista Alma Liebrecht. Seguiu-se a ela Soliloque et Forlane, de Reinaldo Hahn, com duas seções contrastantes e trechos virtuosísticos para viola, que ficou à cargo de Darya Filippenko. A jovem Isadora Rezende impressionou novamente, dessa vez numa interpretação solo, Jeux d’eau, de Maurice Ravel.
Do mesmo autor, Alexandra Soumm tocou, ao lado de Luiz Gustavo, a Sonata póstuma, obra de movimento único escrita ainda em 1897, quando Ravel era estudante do Conservatório de Paris, mas que foi publicada apenas em 1975. Já com Alexandre Barros, o incansável (e sempre excelente) Luiz Gustavo interpretou a Sonata para oboé e piano, de Poulenc. O concerto terminou com Liebesleid, de Fritz Kreisler, com a participação de Jesús Reina.
Às 16h, a mesma igreja foi palco de “Melodias à beira do abismo”. À alegria e leveza da belle époque contrapôs-se os horrores da guerra e do nazismo, a partir de compositores que vivenciaram e tomaram diferentes posições frente a alguns dos acontecimentos mais marcantes do século XX: Richard Strauss (As alegres travessuras de Till Eulenspiegel), Alban Berg (Sonata op.1), Valetin Silvestrov (Melodias dos momentos), Gilberto Mendes (Meu amigo Koellreutter) e Kurt Weill (Suíte da Ópera dos três vinténs, em transcrição para violino e piano).
Os concertos são sempre muito bem pensados e executados e é difícil escrever o nome de cada um dos músicos sem adicionar adjetivos como “excelente” e “admirável”. Seria repetitivo, mas é a verdade: o festival é formado por um time de primeira, que se reveza entre as peças e as diferentes apresentações. Nesta, além de músicos que já tinham tocado no concerto da manhã, somaram-se a soprano Manuela Freua, a flautista Cássia Lima, o clarinetista Marcus Julius Lander, a fagotista Catherine Carignan e o percussionista Bruno Santos.
No livro Uma a outra tempestade, André Capilé e Guilherme Gontijo Flores fundem e recriam The Tempest, de William Shakespeare, e Une tempête, de Aimé Césaire, num procedimento que os autores chamaram de “tradução-Exu”, ficando entre a criação autoral e a liberdade tradutória. Parte dessa aventura poética foi recriada no Pátio da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos às 19h30, com Guilherme, cuja imagem em vídeo foi projetada nas paredes externas da igreja, interpretando o colonizador Próspero e contracenando com Capilé, que ao vivo interpretou a figura escravizada e insurrecta de Caliban, numa inusitada e interessantíssima performance.
Ainda no sábado, à noite, a igreja deu lugar ao mundano com um concerto no qual o espaço (o café Marcas Mineiras) se transformou num cabaré dos anos 1930, com diversão e crítica social andando lado a lado. Com os músicos vestidos a rigor, um quinteto de sopros formado pelos músicos que tocaram ao longo do dia dividiu o palco com uma banda formada pelo guitarrista Silvio d’Amico, o violinista Jesús Reina, o pianista Luiz Gustavo Carvalho e a soprano Manuela Freua.
Produção cênica, espaço, repertório: tudo confluiu para uma noite especial, em que era visível a satisfação dos músicos e todos pareciam inspirados. É preciso destacar, no entanto, a ótima atuação de Manuela Freua, que demonstrou suas várias potencialidades, tanto vocais quanto performáticas, combinando ousadia e comedimento, um uso vocal quase lírico quando necessário (em algumas canções de Kurt Weil, por exemplo) e um canto mais solto e adequado às canções populares de Chico Buarque.
Conceitos
Os concertos de música clássica do Festival Artes Vertentes contam com dois mestres de cerimônia: o crítico Irineu Franco Perpetuo e o melômano Eduardo Leser. Juntos, trazem tanto informações factuais pertinentes às obras e compositores como informações musicais e a ideia geradora de cada espetáculo. O primeiro concerto do domingo, dia 20, aconteceu ao meio-dia e o repertório girou em torno do austríaco Sigismund Neukomm (1778-1858) e o classicismo que com ele veio ao Brasil na época de nossa Independência.
Com sua energia aparentemente inesgotável, Luiz Gustavo Carvalho abriu o recital com peças para piano de Brazílio Itiberê da Cunha e Francisco Braga. Em seguida, juntaram-se a ele Alexandre Barros e Alma Liebrecht para interpretarem, de Neukomm, o Noturno, em versão para oboé, trompa e piano. A manhã terminou com a Brasiliana, de Edino Krieger, com a viola de Iberê Carvalho e o piano do jovem Matteus Versiani. Aliás, os dois músicos não estiveram sozinhos. Um casal de maritacas, que já tinha marcado presença na Sonata de Ravel no dia anterior, resolveu desafiar Iberê justamente no momento introspectivo da cadência da obra. Mas os músicos não perderam a concentração, Iberê seguiu com a cadência e, para uma obra intitulada Brasiliana, talvez a participação das aves, apesar de inusitada, não seja assim tão despropositada.
A apresentação não teve apenas música: entre uma obra e outra, os poetas que participam do festival leram obras suas. Do púlpito elevado da São João Evangelista, Edimilson de Almeida Pereira leu um belo texto poético (“De volta ao sol”) cujo mote é um manto tupinambá. André Capilé, declamador sempre envolvente, leu poemas de seu livro Azagaia. Finalmente, Prisca Agustoni leu o tocante “Vitória régia”, poema escrito a partir de uma notícia de jornal e de uma crônica de Julián Fuks que narravam a morte de Amoim Aruká Juma, último homem da etnia Juma, morto de covid na Amazônia em fevereiro de 2021.
O domingo foi pleno de atividades feitas em parceria com artistas e professores da UFMG, como a de Marco Scarassatti e Josiley de Souza. “Será o Benedito?” é performance sonoro-narrativa a partir de histórias da tradição oral centradas na figura de Benedito Meia-Legua que, no século XIX, liderava ações para libertação de negros escravizados carregando consigo uma pequena imagem de São Benedito.
Por sua vez, na palestra “Pode o subalterno falar?”, Sandra Regina Goulart Almeida, reitora da UFMG, partiu do título de um famoso ensaio da crítica literária e feminista indiana Gayatri Chakravorty Spivak. Nele a estudiosa mostrava, há quase 40 anos, que não existem condições políticas para que o subalterno possa falar; que não era papel dos intelectuais falar por eles e nem mesmo abrir espaço a esses sujeitos como se fosse uma concessão de alguém que está em outro patamar. Segundo Spivak, o necessário é que se criem as condições e estruturas para que, quando falem, estes sujeitos tenham de fato a possibilidade de serem escutados. Além de expor as ideias de Spivak, Sandra Almeida inseriu essa discussão, fundamental nos estudos pós-coloniais, dentro do contexto brasileiro contemporâneo.
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