Com “O corvo”, ópera chega ao formato da animação

por Luciana Medeiros 07/06/2021

Obra encomendada a Eduardo Frigatti, criada sobre o poema de Edgar Allan Poe, estreia no dia 13 no Festival Amazonas de Ópera

Quando os diretores do mais importante festival de ópera do país se viram imprensados pela pandemia, a solução foi buscar as plataformas digitais e sua linguagem – e alcance – para seguir em frente. A 23ª edição do Festival Amazonas de Ópera acaba de estrear, nesse domingo, 6 de junho, com artistas brasileiros, propostas autorais e inovadoras de se fazer ópera pelas telas. E não apenas mudar do palco para a transmissão, mantendo os parâmetros tradicionais: a ideia foi combinar a ópera com o cinema, usando os recursos técnicos e idiomáticos do olhar cinematográfico.

Dos três títulos líricos da edição, especialmente encomendados a jovens compositores brasileiros, todos com a duração máxima de 30 minutos, chama atenção a ópera que terá sua estreia no domingo, dia 13: a animação O corvo, de Eduardo Frigatti, com a concepção de Ana Luisa Anker, roteiro de Carolina Mestriner e direção de arte e desenhos de Giorgia Massetani. 

Baseada no texto de Edgar Allan Poe, a ópera ganhou um espetacular clima noir nas referências aos clássicos e soturnos Metrópolis, de Fritz Lang, e O gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene, por exemplo. “Só coisinha leve”, brinca Ana Luisa Anker em entrevista por zoom. O resultado é impactante e, como a primeira das três óperas do FAO, Três minutos de sol, de Leonardo Martinelli, encontra a cultura pop e os temas mais quentes do momento de quarentena – como a distância e a solidão.

O projeto começou com a ideia de uma canção, proposta por Frigatti, a partir do poema de Poe. “A direção do festival me sugeriu transformar numa ópera de até meia hora”, conta o compositor diretamente de Swidnik, na Polônia, onde mora – e onde estudou com ninguém menos que Krzysztof Penderecki. “Em seguida, propuseram que fosse uma animação, e eu achei fantástico. Existem adaptações de óperas para animação, mas não sei de nenhuma especialmente escrita para esse formato.” Uma curiosidade: a ópera, aliás, havia entrado definitivamente na vida do compositor quando se casou com a polonesa Paulina Łuciuk Frigatti, cantora e também compositora de óperas, que esteve em São Paulo para um período de estudo na Academia de Ópera do Theatro São Pedro, onde cantou em várias produções. “Ela é minha consultora pessoal de escrita para voz. Então, tem um dedinho dela no Corvo”, conta.

Cena da ópera animação ‘O corvo’ [Divulgação]
Cena da ópera animação ‘O corvo’ [Divulgação]

A perda como temática não é novidade para o compositor brasileiro, que considera os tripés de seu trabalho o experimentalismo, a espiritualidade e a referência da música brasileira. “Claro que na pandemia a perda ganhou outro significado. E meu mestre Penderecki me dizia para trabalhar com textos clássicos. Por isso, escolhi o poema do Poe e há citações à Eneida, para lembrar o trecho em que Enéas conhece e abandona a Dido e ela se mata”, explica Frigatti. “Há o luto e o sentimento de culpa que atravessam a obra”, completa. 

A diretora de arte Giorgia Massetani, italiana radicada no Brasil, conta que tem como recordação de infância marcante o longa Fantasia, de Walt Disney, “pela relação entre som e imagem”. Ela traz à conversa também o artista visual sul-africano William Kentridge, que faz direção e cenário de óperas – uma delas inclusive, a montagem da Metropolitan Opera de Nova York de O Nariz, de Shostakovich, estrelado pelo brasileiro Paulo Szot. 

“Estamos nos primeiros momentos de numa nova era de novos formatos, de novas possibilidades técnicas, com equipamentos mais leves e potentes, por exemplo”. Giorgia também é responsável pelos desenhos de O corvo.

Usando a técnica de colagem – com elementos fotografados/filmados e aplicados na animação – Ana Luisa constrói o visual de noite tempestuosa, pássaro agourento e saudade dolorosa. Toda a animação segue o tom do pesadelo – cores escuras, imagens fantasmagóricas, delírios. 

“Gosto de ópera, mas nunca tinha trabalhado com o gênero. Eu ficava muito emocionada quando ia colocar as cenas no lugar, com a música”, confessa Ana Luisa. “É muito tocante. O desafio foi imenso, os animadores toparam essa empreitada de criar imaginando onde iam ficar as vozes e o produto final com orquestra.”  A gravação com a Amazonas Filarmônica e o Coral do Amazonas, regidos por Marcelo de Jesus e Otávio Simões, foi feita em Manaus; o tenor Giovanni Tristacci colocou a voz em São Paulo. 

“Claro que o impacto da ópera ao vivo é insubstituível”, reconhece Eduardo Frigatti. “Entre a orquestra e o público não há mediador, é o som direto. Mas fazemos o que o momento exige, e quem sabe depois O corvo chegue ao palco. Tive um professor que dizia: ‘todo mundo gosta de ópera, só não sabe’. Eu concordo inteiramente com ele.” Giorgia retoma a questão: “Amo palco, coxia, central técnica, plateia, mas estou feliz pela possibilidade de nos embrenharmos por esse formato, que segue uma transição muito enriquecedora.”

E, com uma ópera em animação, pode ser que muito mais gente descubra, portanto, que gosta de ópera e não sabia. 

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