É claro que, a esta altura, todo o meio musical já sabe e lamenta a morte de uma das mais importantes personalidades musicais de nosso meio, a regente Naomi Munakata, vítima da Covid-19, na última semana. O Site CONCERTO publicou a notícia com um resumo completo de sua atuação profissional (leia aqui).
Ainda assim, eu gostaria de tratar um pouco mais de sua contribuição. Pensar nas vezes em que a procurei para tratar de diferentes temas relativos à nossa vida musical é um modo claro de entender sua relevância.
Em 2014, a Escola Municipal de Música completou 45 anos. Fundada em 1969, ela logo se tornou um centro de formação vital, por onde passaram alguns dos mais importantes músicos brasileiros em atividade. Naomi foi aluna da EMM e sua professora a partir de 1978. “No início, era uma escola com menos alunos e menos professores, mas a qualidade e a exigência sempre foram as mesmas”, ela me disse à época.
De sua atuação docente, lembrou que “tínhamos orgulho de aprovar alunos que prestavam vestibular para as faculdades do Brasil e do exterior e de receber alunos já universitários para fazer um reforço nos seus estudos de música”. Naomi chegou a ser diretora da escola entre maio de 2011 e julho 2013.
Anos depois, ao traçar um histórico do canto coral no Brasil, é claro que não poderia deixar de contar a pequena revolução que ela fez com o Coro da Osesp, o qual dirigiu até 2015. O conjunto nasceu em 1994 como Coro Sinfônico do Estado de São Paulo. Em 2001, veio a grande reformulação e profissionalização do grupo, que se juntou à bem-sucedida renovação da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, tornando-se o Coro da Osesp. Nas mãos de Naomi Munakata, o Coro da Osesp elevou significativamente o padrão dos coros brasileiros e se tornou, tal qual a própria orquestra, um marco em nossa vida musical.
Na entrevista que concedeu naquela ocasião, Naomi contou que quando começou a cantar, a partir da década de 1970, a vida coral brasileira “estava no auge”. Além de trabalhar com conjuntos e maestros importantes, como o Coral Pró-Música Sacra, Klaus Ditter-Wolf e o Madrigal da Juventude, ela mesma montou um coro.
Ela falou também sobre sua experiência com coros amadores: “É uma atividade muito legal tanto para os regentes, que têm de tirar leite de pedra, quanto para os cantores, às vezes velhinhos com pouca atividade física e interação social, e que passam a conviver com um grupo, exercitar o diafragma”. E deu o exemplo de seu próprio pai, o regente coral Motoi Munakata: “Meu pai teve um AVC e ficou seis meses em coma. Quando voltou, começou a cantar para a fonoaudióloga e isso foi fundamental para que ele voltasse a falar normalmente. O canto coral tem um lado terapêutico importantíssimo”.
Rememorando o início do trabalho com o Coro da Osesp, ela disse que fazia questão de que os cantores tivessem leitura musical. O que hoje pode parecer corriqueiro nos agrupamentos corais profissionais não era até então uma obrigatoriedade: os cantores não sabiam ler música e aprendiam o repertório “de ouvido”. Mas, já naquela ocasião (a matéria foi feita em 2017), ela disse que a situação havia mudado sensivelmente e que os jovens coralistas tinham uma formação muito melhor.
Em março de 2018, ao fazer um panorama sobre a situação das mulheres na música clássica, novamente não pude deixar de citar o trabalho de Naomi. Não apenas por sua qualidade, mas por se tratar de uma mulher que liderou por 20 anos um dos mais importantes coros do país, quando sabemos que postos de liderança, como a regência, são ainda mais hostis às mulheres do que as demais posições.
Algumas vezes, ao conversar com regentes estrangeiras que trabalharam com a Osesp – Nathalie Stutzmann, artista associada da orquestra por três temporadas, e Marin Alsop, titular da Osesp durante nove anos –, elas mencionaram com admiração o trabalho de Naomi Munakata. A qualidade do Coro da Osesp, aliás, foi elogiada por muitos dos regentes estrangeiros que se apresentaram com a orquestra.
Também cruzei com ela profissionalmente em 2016, no I Simpósio de Mulheres Regentes, organizado pela maestrina Ligia Amadio. Numa mesa que discutia as especificidades relativas às distintas áreas da regência, mediei a conversa entre Naomi Munakata, Vania Pajares, Isabela Sekeff, Mara Campos e Monica Giardini. Foi um encontro simpático, com muitos desabafos e histórias que guardavam algo de cômico, ao mesmo tempo em que revelaram uma realidade trágica para as mulheres regentes.
Mas a primeira vez que estive Naomi Munakata foi para uma entrevista especial. Em setembro de 2009, a Revista CONCERTO passou por uma grande mudança editorial, adotando o formato que possui hoje. Coube a mim preparar uma matéria sobre o primeiro CD do Coro da Osesp, que comemorava 15 anos. Fui até a Sala São Paulo conversar com Naomi e alguns dos coralistas mais antigos após um ensaio. O clima era de descontração, entrosamento e nítida felicidade. Quando perguntei sobre as maiores qualidades do coro, Naomi disse: “é um coro afinado, homogêneo, versátil – pois somos exigidos a fazer de tudo – e ágil, já que todos os integrantes leem partitura e isso faz com que possamos preparar as peças com maior rapidez”.
“Os maestros ficam impressionados também pelo fato de sermos um coro profissional especializado no repertório sinfônico”, ela completou. “Em países com maior tradição musical o comum é haver corais especializados em ópera. Quando necessitam de coros para obras sinfônicas, as orquestras apelam para associações, universidades, locais que em geral possuem coros amadores de boa qualidade. A maioria delas não conta com um grupo como o nosso, então esse trabalho além de tudo é um privilégio”, afirmou com orgulho.
Os cantores, por sua vez destacaram que ensaiavam “com entusiasmo e vontade”. “Normalmente o maestro fica à parte, mas aqui não existe isso, somos todos amigos”, disseram. “O único problema que é às vezes não consigo mandar, né?”, completou, bem-humorada, Naomi.
O disco foi todo dedicado a autores brasileiros do século XX, incluindo algumas canções populares. “Pedi para esse pessoal que está aqui, que são os que completam os 15 anos, escolher peças que gostassem ou que fossem marcantes para o Coro”, ela me disse nesse encontro, confirmando ótimo relacionamento que imperava no grupo.
Àquela altura, eu ainda não tinha ouvido o CD Canções do Brasil, uma obra-prima. Sob sua batuta, o Coro da Osesp ainda lançaria outros dois discos, dedicados a peças de Gilberto Mendes e Aylton Escobar, e igualmente de altíssimo nível.
Naomi era regente titular do Coral Paulistano do Theatro Municipal desde 2016. A consternação do meio musical quando a notícia de sua morte se espalhou dá bem a medida da importância do trabalho de Naomi Munakata, uma profissional doce, exigente e discreta. “A trajetória da Naomi conta uma parte muito importante da história da música coral de São Paulo”, disse Claudia Toni no dia da morte da regente. Contemporâneas, elas trabalharam juntas no início do processo de reestruturação do Coro e da própria Osesp (Toni era diretora executiva do grupo). “Ela sofisticou e elevou a música coral a níveis que nunca havíamos visto antes em São Paulo”, completou.
Também sob o impacto da notícia, o maestro Isaac Karabtchevsky afirmou que “Naomi era uma fantástica figura no cenário musical brasileiro. Ela não convivia com improvisações, seu único compromisso residia na realização musical sólida de onde emanavam talento e respeito à criação. Sofro, assim como todos nós que lutamos pela música em nosso país”.
Por sua vez, a contralto Nathalie Stutzmann publicou um tocante post no Facebook no dia 27, expressando toda a sua admiração pela colega: “Que tristeza... Minha amiga Naomi Munakata nos deixou ontem depois de pegar a Covid-19. Ela era uma pessoa maravilhosa e regente coral com quem eu adorava trabalhar em São Paulo. Era a alma do Coro da Osesp e moldou seu canto por mais de 20 anos. Nós trabalhamos juntas pela última vez em 2016 na Grande Missa em dó menor de Mozart [veja a gravação aqui]. E hoje o maravilhoso coro cantado naquele último concerto traz lágrimas aos meus olhos e conforto à minha alma. Descanse em paz e obrigado, obrigado por tudo, Naomi, você fará muita falta”.
É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.
Comentários
Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.