Poderoso feiticeiro invocador da grande orquestra, compositor não tem sido lembrado à altura
Sei não, mas o fato de Hector Berlioz ter morrido há 150 anos não marcou como efeméride musical. E é injusto. Contemporâneo a compositores alemães que criavam um romantismo específico e tendo rapidamente ganhado o mundo, Berlioz, poderoso feiticeiro invocador da grande orquestra, impunha uma concepção romântica épica francesa – como foi épico Hugo. Sem ele, Richard Wagner – e tantos outros – não existiriam ou, pelo menos, não da mesma maneira.
Em 1994, foi criado um festival em sua cidade de nascimento, a pequena La Côte-Saint-André (de 5 mil habitantes); evento muito simpático, mas modesto em relação ao grande gênio homenageado. Berlioz merece mais, muito mais.
Começou como autodidata. Adolescente, descobriu no sótão de sua casa uma flauta e um método e, sozinho, ou quase, aprendeu rudimentos de solfejo. Se lhe vinha ao espírito a invenção de qualquer melodia, procurava acordes, tateando um violão. Queria compor e chegou a publicar, com 17 anos, uma deliciosa melodia: O despeito da pastora.
Em Paris, onde foi para cursar medicina, pôs-se em contato com Jean-François Lesueur, professor no conservatório. Lesueur concebia a música como “pintura em sons”. Esse mestre providencial, apaixonado por Gluck, transmitiu a Berlioz a bela concepção de que a música deve se submeter a elementos externos: um plano dramático, intenções literárias, evocações poéticas.
Berlioz entrou no conservatório e compartilhou a vibração criadora de uma geração genial. Victor Hugo, Alfred de Vigny, Alexandre Dumas, Eugène Delacroix, Prosper Mérimée, Honoré de Balzac eram jovens – tinham entre 24 e 30 anos – já célebres e que se irmanaram a esse compositor de 20 anos.
Ora, em 1827, ocorre algo maior para o romantismo francês: uma companhia de atores ingleses vai representar Shakespeare em Paris. Trata-se de uma revelação. Berlioz não compreende a língua, mas fica magnetizado pelas peças e por uma atriz irlandesa linda, Harriet Smithson, que encarna Julieta e Ofélia. Berlioz acaba se casando com ela, como se casasse com o próprio Shakespeare.
Em 1828, outra descoberta o deixa atônito. A recém-fundada Société des Concerts du Conservatoire apresenta uma série de concertos dedicados a Beethoven. Como era possível, perguntava-se, que não conhecesse esse gênio máximo?!
Enfim, apesar de ter sido montada numa versão cheia de cortes, Der Freischütz, de Weber, composição de espírito tão novo, tão inspirada e elevada, se tornaria, para ele, uma referência. Berlioz, em 1841, orquestraria as partes faladas dessa obra e o Convite à valsa, do mesmo Weber, para transformá-lo em balé, satisfazendo, assim, as exigências que as regras da Ópera de Paris impunham.
Gluck, Shakespeare, Beethoven e Weber foram, para esse autodidata, os verdadeiros mestres formadores. Impossível que fossem melhores.
Enfim, no ano 1830, concebe um projeto grandioso. Berlioz o descreve assim numa carta: “Tenho que fazer uma imensa composição instrumental, pensada para impressionar fortemente o auditório”. Trata-se da Sinfonia fantástica, que tem, como subtítulo, “Episódio da vida de um artista”.
Como novidade, os ouvintes recebiam um roteiro que especificava as intenções narrativas e descritivas do compositor. Berlioz avança aqui por uma seara inteiramente nova: a da convicção de que o artista deve, pela música, não apenas transmitir sentimentos coletivos, mas também os mais secretos movimentos da própria alma. A dificuldade disso deriva de não existirem agora, como no passado, códigos coletivos que o público identifique. Foi preciso, assim, inventar essa estupenda forma híbrida.
A sinfonia, expressão sonora dos tumultos íntimos, engrandecida pela inspiração prodigiosa, foi aclamada na pequena sala de concertos do conservatório de Paris.
Depois, Berlioz obteve o célebre Prêmio de Roma, bolsa destinada aos jovens de talento e que os enviava para a Academia da França em Roma. Berlioz odiou sua estada na Cidade Eterna, mas guardou fortes lembranças italianas, que inspiraram sua sinfonia concertante Haroldo na Itália (1834).
O resto de sua vida transcorreria entre angústias e desesperos, em meio a terríveis problemas financeiros. Estes, porém, não o impediram de criar as mais altas e monumentais obras-primas: a sinfonia Romeu e Julieta, A infância de Cristo, As noites de verão, A danação de Fausto, seu prodigioso Réquiem e Os troianos. Sem contar O tratado de instrumentação, que determinou o futuro de toda a música orquestral.