A vida de Maurice Ravel

por Camila Fresca 01/03/2015

Para o público em geral, por menor que seja o conhecimento da música de concerto, o nome Ravel provavelmente não soa completamente estranho – afinal, ele é o autor de uma das mais famosas obras de toda a tradição clássica, o Bolero. Já aqueles que conhecem um pouco desse universo talvez liguem imediatamente o nome de Ravel ao de outro compositor: Debussy, grande ícone da música francesa no início do século XX. De fato, os dois autores franceses foram contemporâneos e amigos – embora a relação também comportasse conflitos e ciúmes. Ravel tem personalidade e brilho próprios, que fazem dele uma das figuras de proa da música produzida na primeira metade do século XX, ao lado de Bartók, Stravinsky, Villa-Lobos, Schönberg, Berg, Webern, Varèse e, claro, Debussy.

Ravel nasceu em Ciboure, cidade localizada no País Basco francês, a poucos quilômetros da fronteira com a Espanha, em 7 de março de 1875. Sua mãe, Marie-Delouart, era de origem basca e família espanhola, enquanto seu pai, Joseph, era engenheiro e inventor de origem suíça. Poucos meses depois do nascimento do primogênito, a família mudou-se para Paris, onde, com 6 anos de idade, Ravel teve suas primeiras aulas de música. Ingressou no Conservatório de Paris em 1889 e conquistou o primeiro prêmio numa competição interna, em 1891. Mas, apesar de reconhecido como um aluno muito talentoso, era considerado um tanto desatento e preguiçoso para os rígidos padrões da instituição. A essa altura, ele já demonstrava interesse pela composição, e as peças pioneiras surgiriam em 1893. As primeiras paixões musicais de Ravel foram Schumann, Weber, Chopin e Liszt, artistas nos quais ele buscou os elementos iniciais de sua escrita pianística. Aos 20 anos, quando publicou suas primeiras obras, era um assíduo aluno do curso de composição de Gabriel Fauré. 

No conservatório, Ravel estudou de 1889 a 1895 e de 1897 a 1903. A primeira fase lá coincidiu com o momento em que conheceu Claude Debussy. O compositor do Prelúdio para a tarde de um fauno era doze anos mais velho que Ravel, que o admirava profundamente. Ao longo da carreira, os dois participaram dos mesmos eventos musicais e suas obras foram tocadas juntas numerosas vezes. Mas, com o tempo, facções se formaram em torno de cada um deles, discutindo a cronologia de obras para provar quem havia influenciado quem. Essas disputas esfriaram a camaradagem do início. 

Em 1901, Ravel obteve o segundo lugar no Prix de Rome, prestigiosa bolsa de estudos atribuída pelo governo francês a jovens talentos. Nesse mesmo ano, compôs Jeux d’eau (Jogos de água) para piano. Sobre essa obra de virtuosismo, que explora o timbre das regiões agudas do teclado (pouco usadas até então, exceto nas obras de Liszt), o próprio Ravel afirmou: “Os Jeux d’eau estão na origem de todas as novidades pianísticas que quiseram reconhecer em minha obra”. De fato, Ravel é um daqueles raros criadores cuja personalidade essencial se revela desde as primeiras criações. No ano seguinte, ele escreveria o Quarteto de cordas e, em 1905, Miroirs (Espelhos), conjunto de cinco peças para piano que se destacam por uma harmonia audaciosa e fórmulas pianísticas rebuscadas. 

Por diversas vezes, Ravel se inscreveu no Prix de Rome. Mas nunca ganhou o primeiro prêmio, mesmo quando já era um compositor reconhecido. Sua personalidade independente e seu relacionamento com a vanguarda francesa incomodavam a direção do conservatório. Tanto que, em 1905, o fato de ele perder mais uma vez o prêmio foi considerado um escândalo que acabou forçando o diretor da instituição a renunciar.

Em 1907, Ravel concluiu sua primeira grande obra orquestral, a Rapsodie espagnole; no ano seguinte, uma importante obra para piano, Gaspard de la nuit, na qual a escrita pianística exige técnica transcendente. Em 1911, foi a vez das Valses nobles et sentimentales, sucessão de valsas para piano à maneira de Schubert e um dos pontos máximos de sua carreira. Essa obra, orquestrada e acrescida de um argumento coreográfico, acabou sendo a primeira colaboração de Ravel com os Ballets Russes, de Diaghilev (Ravel não apenas orquestrava obras suas para outras formações como fazia o mesmo com peças de outros compositores, dado seu notório talento na escrita orquestral). Uma nova encomenda de Diaghilev resultou, em 1912, em Daphnis et Chloé, sinfonia coreográfica em três partes que é outra de suas obras-primas. “Ao escrevê-la, minha intenção foi compor um vasto afresco musical, menos preocupado com o arcaísmo do que com a fidelidade à Grécia de meus sonhos. [...] A obra é construída segundo um plano tonal muito rigoroso, por meio de um pequeno número de motivos cujos desenvolvimentos asseguram sua homogeneidade”, revelou o compositor.

Ravel teve vida pessoal discreta e aparentemente sem grandes acontecimentos; nunca se casou e não teve filhos. Em 1914, apressou-se para concluir o Trio para piano, violino e violoncelo antes de alistar-se no Exército, por ocasião da Primeira Guerra Mundial. A perda da mãe, em 1917, o abalou profundamente – foi nessa época que escreveu Le tombeau de Couperin (O túmulo de Couperin). Homenagem à música francesa do século XVIII, é uma suíte para piano em seis movimentos, cada um dedicado a um amigo perdido na guerra. Com a morte de Debussy, em 1918, e a consolidação de nomes como Satie, Schönberg e Stravinsky, a música moderna passaria a ser dominada por um novo estilo, ao qual Ravel também daria sua contribuição.

São do início da década de 1920 as obras La valse, outra encomenda dos Ballets Russes (que, no entanto, foi rejeitada por Diaghilev), a Sonata para violino e violoncelo (dedicada à memória de Debussy) e a famosa orquestração de Quadros de uma exposição, de Mussorgsky. Já em 1925, Ravel finalizou sua segunda ópera, L’enfant et les sortilèges (O menino e os sortilégios), projeto iniciado em 1917 em parceria com a escritora Colette. De 1928 é seu célebre Bolero, balé escrito a partir de uma encomenda da atriz e bailarina russa Ida Rubinstein, que pedira ao autor uma peça de curta duração baseada em tradições musicais espanholas. Inspirado na ascendência basca de sua mãe e no interesse que tinha pela música espanhola, Ravel compôs o Bolero como uma espécie de exercício de orquestração. A partir de uma única ideia melódica, ele desenvolveu a peça num envolvente crescendo orquestral.

Também em 1928, fez uma viagem de sucesso aos Estados Unidos, onde se encontrou com George Gershwin e teve a oportunidade de ampliar sua exposição ao jazz, que ele já admirava. Várias de suas obras tardias mais importantes, como a Sonata para violino e piano e o Concerto para piano em sol, mostram a influência do gênero. É também dessa época o belo Concerto para mão esquerda, escrito em 1931 por encomenda do pianista Wittgenstein, que havia perdido o braço direito na guerra. 

Em 1932, uma lesão sofrida num acidente de carro iniciou o declínio físico do compositor, a partir da perda de memória. Ravel escreveu a última obra em 1934 e, a partir daí, até sua morte, em 28 de dezembro de 1937 – após uma cirurgia no cérebro –, ficou incapacitado para compor. Ironicamente, Ravel, que em sua juventude foi rejeitado por alguns elementos da criação musical francesa por ser um modernista, em seus últimos anos foi desprezado por Eric Satie e os membros do Grupo dos Seis como sendo antiquado, um símbolo do tradicionalismo. 

Apesar de ter deixado um dos mais ricos conjuntos de obras da primeira metade do século XX, Ravel muitas vezes é lembrado apenas (e de forma injusta) como brilhante orquestrador. Sua personalidade musical como compositor reside essencialmente na flexibilidade da melodia e na riqueza da harmonia. Ele contribuiu de forma ampla, a seu modo, para libertar a música da tirania tonal, sendo um compositor ao mesmo tempo exigente e cheio de fantasia.

Maurice Ravel [Reprodução]
Maurice Ravel [Reprodução]

Linha do tempo

1875
Nasce em Ciboure, no País Basco francês, a 7 de março; muda-se com a família para Paris poucos meses depois

1881
Inicia os estudos de piano

1889
Ingressa no Conservatório de Paris

1895
Surgem as primeiras composições: Minueto antigo e, em seguida, Shéhérazade (1897) e Pavane pour une infante défunte (1899)

1901
Recebe o segundo lugar do “Prix de Rome”; escreve Jeux d’eau para piano

1907
Conclui sua primeira grande obra orquestral, Rapsodie espagnole

1911
Compõe as Valses nobles et sentimentales

1912
Compõe Dahnis et Chloé, sinfonia coreográfica em três partes

1914
Conclui o Trio para piano, violino e violoncelo e alista-se no Exército, por ocasião da Primeira Guerra Mundial

1922
Conclui a famosa orquestração de Quadros de uma exposição, de Mussorgski

1925
Finaliza sua segunda ópera, L’enfant et les sortilèges 

1928
Compõe o célebre Bolero, balé escrito a partir de uma encomenda da atriz e bailarina russa Ida Rubinstein; realiza turnê pelos EUA

1932
Sofre um acidente de carro que deixa sequelas

1934
Escreve sua última obra, Don Quichotte à Dulcinée

1937
Morre no dia 28 de dezembro, em decorrência de uma cirurgia no cérebro