Theatro Municipal de São Paulo traz ao Brasil a ópera Prism, de Ellen Reid, sobre abuso sexual e feminicídio
Nem todos perceberam, mas foram gestos políticos. Em abril de 2018, Roberto Minczuk promoveu a estreia brasileira da Missa de Leonard Bernstein. A obra mais eclética e politicamente militante de Lenny demorou 47 anos para chegar ao Brasil. Chegou no momento certo: aqui em 2018, como lá em 1971, o país estava fraturado, rachado entre direita e esquerda.
Em maio passado, vivíamos – como ainda vivemos – um momento particularmente ameaçador para as artes em geral, sempre alvo preferencial dos facões oficiais. E Minczuk levou para o palco do Municipal o Réquiem de Andrew Lloyd Webber, o mago dos musicais. A cereja política fulminante daquele concerto foi a concepção inovadora da execução de uma obra surradíssima e muito conhecida do público, a Pavana para uma infanta morta, de Ravel: a bela e memorável melodia tomava conta do teatro enquanto um telão projetava uma emocionante carta da jornalista negra de 34 anos Maria Amélia a sua mãe, assassinada pelo pai. Um ato impactante denunciando o feminicídio galopante que assola o Brasil de modo especialmente cruel.
Tudo conduzia a um clímax como o da ópera Prism, da jovem compositora canadense Ellen Reid, radicada em Los Angeles, quase simultaneamente apresentada aqui.
O enredo deixa claro. Aqui tudo converge para um gesto efetivamente político – e de largo alcance. Vários fatores levam a isso. A contemporaneidade: esta é a primeira aventura lírica de Reid e estreou em novembro de 2018 nos Estados Unidos, portanto há menos de um ano. A qualidade artística: ganhou o prestigiado Prêmio Pulitzer de Música em abril. Terceiro, o tema: abuso sexual e feminicídio. Quarto: a carga do testemunho pessoal – Ellen e a libretista Roxie Perkins denunciam abusos que sofreram na carne, o que aumenta muito a voltagem da denúncia.
A montagem original chega praticamente imaculada ao palco do Theatro Municipal. A mezzo soprano Rebecca Jo Loeb e a soprano Anna Schubert encarnam mãe e filha. A direção cênica é de James Darrah, e a produção, da Beth Morrison Projects. Daqui participam quatro bailarinos, 12 integrantes do Coral Paulistano e 14 músicos da Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal, regidos por Roberto Minczuk.
Vale a pena conhecer o enredo em detalhes. Bibi e sua mãe superprotetora Lumee vivem juntas e isoladas do mundo, encerradas em uma espécie de santuário imaculado, o prisma que dá nome à obra. Ambas tentam proteger uma à outra de uma perigosa doença à espreita e que já infectou as pernas de Bibi – tolhendo-lhe a capacidade de andar. Todos os dias, a mãe tenta dar à filha o remédio para tratar a doença, mas, a cada vez que a menina está prestes a tomar a medicação, o Lado de Fora do prisma irrompe com assustadora fúria, deixando Bibi com medo de ingerir o remédio.
Numa noite, desesperada, Bibi tenta tomar todas as doses de uma vez, mas é impedida por uma luz azul tóxica que entra por baixo da porta, atravessando o santuário. Seduzida por um sinal caleidoscópico vindo do Lado de Fora, a menina começa a se rebelar contra as ordens da mãe – rompendo, assim, o relacionamento e a frágil existência no claustro. Ofuscada pelas cores e pelas lembranças de sua vida, que se confrontam com as mais recentes, Bibi precisa escolher entre abandonar a mãe para descobrir a verdade sobre sua condição ou aceitar as histórias que ela lhe conta e, assim, suportar a única vida que conhece.
Os quatro bailarinos simbolizam as projeções de Bibi. São os únicos capazes de alcançar o interior do santuário. Por eles, Bibi, que não anda, pode voar. Eles a pegam no colo, a confortam e a acalentam, ao mesmo tempo que provocam na menina memórias aflitivas.
Prism estreia – explícito gesto político – acompanhada de um ciclo de conversas intitulado “Diálogos prismados: a voz e a arte das mulheres”, com participação de diversas dramaturgas, artistas e outras profissionais que debaterão os desafios da mulher no mundo da música e da ópera. A curadoria é de Camila Fresca, colaboradora da Revista CONCERTO, e da crítica teatral Marici Salomão; a entrada é franca; e o evento acontece na Sala do Conservatório na Praça das Artes, dias 6 e 7 de setembro.
Três importantes gestos políticos já configuram um projeto coerente. Acostumamo-nos a considerar a música clássica como algo acima do bem e do mal, a ser saboreado em locais que nos isolem do mundo conturbado que nos rodeia. Em miúdos, um refinado “spa sonoro”. Mas a música não é criada por seres extraterrenos. A música é sempre política, queiramos nós ou não. Até quando se arroga o direito de abdicar da política, configura-se neste gesto uma (covarde) motivação política. Daí a omissão generalizada que se vê nas salas de concerto, onde programadores, maestros, músicos e dirigentes das instituições procuram mexer o mínimo possível – idealmente, nunca – em questões políticas.
Felizmente, não é o que acontece no Municipal. Que Prism seja a primeira de uma série de óperas contemporâneas fundamentais que necessitam com urgência “estrear” por aqui, como as de John Adams, Nixon in China (de 1987, mas surpreendentemente atual graças às trapalhadas de Trump), A morte de Klinghofer (de 1991, indo fundo na questão do Oriente Médio) e Doutor Atômico (2005, atualíssima, vide o ditadorzinho da Coreia do Norte e seus sonhos nucleares). Há muitas outras óperas recentes que inexplicavelmente estão fora do radar de nossos dirigentes líricos. Felizmente, Prism quebra esse idiotizante paradigma.
AGENDA
Ópera Prism, de Ellen Reid
Roberto Minczuk – regente / James Darrah – direção cênica
Dias 4, 5, 7, 8, 10, 11, 13 e 14, Theatro Municipal de São Paulo