Ópera, cinema, educação

por Luciana Medeiros 01/10/2019

Festival Ópera na Tela realiza quinta edição no Rio de Janeiro e chega pela primeira vez a São Paulo, com doze produções filmadas em 2018 e 2019

Festival Ópera na Tela chega em 2019 à quinta edição no Rio de Janeiro e realiza um desejo antigo de seus criadores e produtores, o casal Emmanuelle Boudier e Christian Boudier, da Bonfilm: promove em São Paulo sua primeira maratona de óperas filmadas em alta definição. 

Neste ano, o evento exibe doze produções inéditas no Brasil, oriundas de teatros como o Scala de Milão e a Ópera de Paris e filmadas em 2018 e 2019 – algumas delas, apenas alguns dias antes da exibição, caso de La traviata francesa, em que Violetta Valéry se torna uma digital influencer, registrada no dia 24 de setembro. Nomes como Daniel Barenboim, Anna Netrebko, Juan Diego Flores e o brasileiro Paulo Szot aparecem nas fichas técnicas.

O destaque da programação são as óperas de Verdi – seis produções. No Rio, o festival acontece desde 2015 no Parque Lage, espaço localizado no bairro Jardim Botânico, cercado pela mata que guarda o casarão construído por Henrique Lage nos anos 1920, onde reinou a diva Gabriela Besanzoni, celebridade lírica, paixão do industrial. Em São Paulo, a sede do evento será o pátio do Museu da Casa Brasileira. Os filmes são projetados em telão instalado sob uma tenda de 500 metros quadrados e com 12 metros de altura. O público se distribui em cadeiras desmontáveis e espreguiçadeiras. 

Depois da bateria de apresentações – de 18 a 27 de outubro em São Paulo e de 31 de outubro a 12 de novembro no Rio –, os filmes circulam por cinemas de todo o Brasil. O projeto ainda inclui ações educativas e master classes, a cargo do técnico vocal francês Raphaël Sikorski, e a presença da mezzo francesa Valentine Lemercier para recitais. 

Com um orçamento de R$ 1,6 milhão, o Ópera na Tela registra um aumento progressivo de público, com um salto de 50% de 2017 para o ano passado, segundo Emmanuelle, com cerca de 3 mil pagantes no Parque Lage e um total de 10 mil espectadores contando com o circuito de cinemas. “Também notamos um afluxo bem maior de gente jovem”, acrescenta. “Nosso desejo é democratizar o acesso à ópera”, completa Christian. 

Cena da ópera Os contos de Hoffmann [Divulgação / Matthias Baus]
Cena da ópera Os contos de Hoffmann [Divulgação / Matthias Baus]

Ópera e cinema

A ópera como a conhecemos hoje surgiu no fim do século XVI, na Itália. O cinema, na forma da máquina primitiva dos irmãos Lumière, apareceria três séculos depois, na França. São gêneros de criação múltipla, combinam teatro, música, literatura, dança, artes visuais. 

Desde o início, o cinema buscou, naturalmente, inspiração no mundo lírico, com o uso de temas e roteiros vindos das óperas e operetas – A viúva alegre, de Franz Lehár, ganhou a primeira de suas várias versões cinematográficas em 1925.

Entre 1951 e 1976, emissoras de televisão nos Estados Unidos e na Europa produziram e transmitiram uma varie- dade de títulos – o primeiro foi Amahl e os visitantes da noite, de Gian Carlo Menotti. Entre os anos 1970 e 1990, com a chegada dos aparelhos de videocassete, dos laserdiscs e dos DVDs, começava a fruição doméstica de montagens registradas nos palcos. Óperas em locação também ganharam espaço – marcos dessa modalidade são o suntuoso D. Giovanni de Joseph Losey, filmado em 1979, e os filmes de Franco Zeffirelli, como Cavalleria rusticana (1982), La traviata (1983) e Otello (1986).

Há 13 anos, começou um novo capítulo nessa história. Diretor do Metropolitan Opera de Nova York, Peter Gelb implementou o projeto de transmissão ao vivo das óperas encenadas, que hoje chega a 2.200 cinemas de setenta países em alta qualidade de som e imagem. A primeira ópera foi uma versão de A flauta mágica, de Mozart. A partir de então, dezenas de teatros trataram de produzir seus eventos em Live HD – inclusive no Brasil, onde uma única experiência de montagem nacional foi feita em março de 2015, com a transmissão de Otello direto do Theatro Municipal de São Paulo para cinemas da cidade, do Rio de Janeiro e de Brasília. 

Ali se inaugurava uma nova relação entre ópera e tecnologia, num frescor que aliviava o aroma de decadência da indústria fonográfica, reposicionando o gênero e a casa nova-iorquina no mercado internacional. O sentimento é comum – segundo o diretor da Berlin Staatsoper, Matthias Schulz, em entrevista ao jornal The New York Times, a “distribuição de conteúdo digital é crucial para garantir a relevância da ópera na sociedade”. O Scala vem trabalhando com transmissões em 8K em parceria com a NHK do Japão. Festivais como o de Salzburg e outras casas – entre elas, a Ópera Estatal da Baviera e o Teatro Colón de Buenos Aires – trataram de avançar mais ainda na democratização de suas produções com a transmissão ao vivo pelas redes sociais.

No Brasil, as transmissões do Met começaram em 2010. Fabio Lima, diretor da Mobz, já vinha apresentando as óperas gravadas desde o ano anterior e decidiu, em suas palavras, “arriscar”. “Óperas gravadas exigiam investimento relativamente pequeno, de legendagem e marketing, e podiam ser programadas em horários diferentes nos cinemas”, lembra Lima. “Quando decidimos fazer o salto para apresentar ao vivo, complicou: poucas salas tinham link para satélite e projeção digital, além de disponibilidade para o horário exato da transmissão.” O custo, “altíssimo”, segundo ele, incluía sinal de satélite dedicado e legendas inseridas no Brasil (“a gente precisava baixar, inserir as legendas em português e subir de novo para o satélite”). 

O barítono Paulo Szot participou de duas montagens transmitidas pelo Metropolitan – em Manon, de Massenet, em 2012, e como o protagonista de O nariz, de Shostakovich, no ano seguinte (e é a única presença brasileira nesta edição do Ópera na Tela, cantando na montagem de A viúva alegre da Ópera de Roma, encenada em abril). “É claro que o espetáculo ao vivo traz uma mágica insubstituível, mas acho fantástico que possamos assistir a montagens líricas na tela grande. Assim se dá acesso a quem não pode ir a grandes teatros do mundo, democratiza-se a arte. Informação é sempre algo positivo. E todos lucram: público, casas, artistas.”

No Brasil, há vinte anos estreava o filme La serva padrona, de Carla Camurati. Vinda do recente sucesso do filme Carlota Joaquina, ela encarou sua primeira experiência na direção de ópera. “Fui chamada para dirigir a obra em Minas e ali tive a ideia de transformá-la em filme. La serva padrona tem uma musicalidade muito especial, apenas três cantores, e foi fácil conseguir patrocínio.” Foram 70 mil espectadores, bilheteria respeitável para o gênero. “Dizem que faço cinema operístico, teatral, mas sinto que o próprio cinema tem a expressão de grandiosidade da ópera”, diz ela em entrevista à Revista CONCERTO.

No London International Film Festival deste ano, a compositora Jocy de Oliveira lançou seu filme Liquid Voices – a história de Mathilda Segalescu. A produção terá uma pré-estreia nacional no Ópera na Tela do Rio de Janeiro, no dia 8 de novembro, depois de passar por diversos festivais europeus. Baseada num episódio trágico da Segunda Guerra Mundial, o naufrágio de um navio levando judeus para a Palestina, a ópera-filme de Jocy cria uma ficção em torno do encontro do espectro de uma cantora judia, passageira do barco, com um pescador árabe. “Não conheço outro caso de ópera criada especialmente para o cinema. Filmamos em cinco dias, nas ruínas do Cassino da Urca, com meu ensemble e os cantores Luciano Botelho e Gabriela Geluda.” Liquid Voices terá ainda lançamentos em São Paulo (nos dias 4 e 5 de dezembro, no Cine Sesc) e no Rio de Janeiro, em cinema a ser anunciado.

Estrutura do festival no Parque Lage [Divulgação / Rogerio Resende]
Estrutura do festival no Parque Lage [Divulgação / Rogerio Resende]

Educação

Em 2017, o campinense Thiago Teixeira se inscreveu para as master classes que o Ópera na Tela promove todo ano, a cargo do preparador francês Raphaël Sirkoski, que trabalha com cantores como Nathalie Dessay e Rolando Villazón. Jovem, de família modesta, terminou a temporada de aulas como grata surpresa – e, com apoio dos produtores, estuda canto na UFRJ, com um convite na manga para a escola de música sacra da Catedral de Notre-Dame, em Paris. 

A iniciativa de promover aperfeiçoamento gratuito para cantores brasileiros selecionados vem desde a primeira edição do festival. Para o público estudantil, é promovida uma sessão de trechos das óperas do ano, com direito a apostilas e mestre de cerimônias. Neste ano, o evento apoia ainda a montagem de uma ópera infantil baseada no livro de Pierre Élie Ferrier, O príncipe das palavras tortas, com quatrocentos alunos do Lycée Molière e da Escola Municipal Professora Dídia Machado Fortes e a orquestra de jovens da ONG Ação Social pela Música do Brasil. “Estamos fazendo a produção executiva do espetáculo, que vai ser no Teatro Riachuelo e vem sendo ensaiado há algum tempo”, conta Emmanuelle. “É uma novidade, assim como a edição em São Paulo. E fazemos questão do educativo, cada vez mais importante.”

Perguntada sobre as importantes vitórias desses anos consecutivos, Emmanuelle Boudier não hesita: “Sobreviver como evento e não baixar o padrão nunca”. Os apreciadores brasileiros de ópera – em geral, muito famintos de novidades pela programação rarefeita no país – agradecem. 


AGENDA
Festival Ópera na Tela

Dias 18 a 27 de outubro, Museu da Casa Brasileira (São Paulo)
Dias 31 de outubro a 12 de novembro, Parque Lage (Rio de Janeiro)