Memória e presente de um ideal

por Camila Fresca 01/12/2019

Osesp abre neste mês o projeto “Todos juntos – uma ode global à alegria”, dedicado à Nona de Beethoven, em concertos que marcam a despedida de Marin Alsop

“Glória! Glória!/ Alegria, alegria/ Filha do divino em nós/ Abre as portas do destino/ E entre a humanidade, após!/ Teu apelo vê reunido/ O que era dividido em vão,/ Homens e mulheres, todos/ São agora irmã e irmão.”

Assim são os primeiros versos presentes em uma das obras mais conhecidas e potentes de todo o repertório da música de concerto: a Sinfonia nº 9 de Ludwig van Beethoven (1770-1827). Última sinfonia completada pelo compositor, a Nona data de 1824, quando Beethoven já se encontrava completamente surdo. 

A peça nasceu a partir de uma comissão da Philharmonic Society of London (atual Royal Philharmonic Society). Era a oportunidade de Beethoven trabalhar com um poema que ele tentava musicar pelo menos desde 1793: a “Ode à alegria”, de Friedrich Schiller (1759-1805), datado de 1785. Parte do poema foi utilizada no quarto e último movimento da sinfonia, com o texto cantado por solistas e coro.

Num ensaio dedicado à Nona, o professor Samuel Titan Jr. afirma que, do ponto de vista musical, longe de anular os três primeiros movimentos puramente instrumentais, a “Ode” estabelece um diálogo intenso com todo o material anterior. Já sobre as motivações extramusicais, Titan revela que “no fim da vida […] Beethoven retoma e repensa os ideais humanos e políticos que o haviam inspirado em seu momento heroico, no começo do século. Não o faz com a urgência napoleônica de outrora, é certo; antes, comporta-se como quem não quer esquecer, como quem quer legar ao futuro a promessa ou o projeto de uma vida humana mais plena e luminosa”.

Marin Alsop [Divulgação / Adriane White]
Marin Alsop [Divulgação / Adriane White]

Esse significado simbólico e político não passou incólume entre a audiência da época, tampouco ao longo dos quase duzentos anos desde a criação da obra. Para ficar apenas no século XX, a última sinfonia de Beethoven – mais especificamente a “Ode à alegria” – foi tocada na queda do Muro de Berlim em 1989 e em Sarajevo (Bósnia) em 1996. Desde 1985, uma versão instrumental da “Ode” é o hino oficial da União Europeia. E, em 2001, a Nona tornou-se a primeira obra musical considerada Patrimônio Imaterial da Humanidade pela Unesco.

É, portanto, uma obra-prima musical e uma peça carregada de simbolismo, que encerra a temporada 2019 da Osesp nos dias 12, 13, 14 e 15. A data marca, ainda, a despedida de Marin Alsop como diretora musical e regente titular do grupo. 

Não se trata de um programa tradicional, no entanto. A execução integra o projeto “Todos juntos – uma ode global à alegria”, promovido pelo Carnegie Hall. “A Nona sinfonia viria a se tornar uma das mais – senão a mais – famosa obra musicada por qualquer compositor na história do Ocidente”, afirmou Arthur Nestrovski no texto da Revista da Osesp de 2019. “Paradoxalmente, permanece pouco conhecida, de fato, por milhões ou bilhões de ouvintes que não entendem o idioma alemão. Seu sentido, porém, é a essência da sinfonia.”

Nestrovski lembra que os ideais iluministas de liberdade, igualdade e fraternidade que inspiram a obra não eram plenamente vividos à época de Beethoven, fosse na Europa, fosse no Brasil – onde ainda imperava a escravidão. “Com tudo isso em mente – correspondências e disparidades que caracterizam a cultura brasileira em relação ao legado europeu –, foram imaginadas respostas ao desafio lançado pelo Carnegie Hall: partindo de uma aposta na força da alegria, situar a Nona em novo contexto, dialogando com nosso próprio tempo e lugar”, explica.

O projeto “Todos juntos” terá sua estreia com a Osesp, dando início às comemorações pelos 250 anos de aniversário de Beethoven. Depois, segue por oito orquestras ao redor do mundo, sempre com regência de Alsop, finalizando com uma orquestra jovem reunida pelo Carnegie Hall, em Nova York. “Cada uma criará sua rede de referências musicais, entremeadas com a obra de Beethoven; cada uma produzirá, também, uma tradução da ‘Ode’, a ser cantada na língua de cada país”, explica Nestrovski, responsável pela versão em português (inclusive pelo trecho que abre este texto).

No caso da Osesp, a Nona chega “na moldura de um anônimo canto de capoeira da Bahia, conhecido como Navio negreiro, tramando conversas com um trecho de uma abertura de Paulo Costa Lima, Cabinda – nós somos pretos e de um adágio para cordas encomendado a Clarice Assad, que alude ao tema da canção tropicalista Alegria, alegria (1967), de Caetano Veloso”, esclarece Nestrovski. 

Reforçam o time orquestral da Osesp a Orquestra Sinfônica da USP, a soprano Camila Titinger, a mezzo soprano Luisa Francesconi, o tenor Paulo Mandarino e o barítono Paulo Szot, este encerrando suas atividades como artista residente. Além dos coros Acadêmico e da Osesp, a apresentação conta, ainda, com o Coral Jovem do Estado de São Paulo. “Tudo somado, essa Nona será um retrato de muito do que mais nos move, como artistas, gestores, cidadãos”, resume Nestrovski. 


AGENDA
Sinfonia nº 9 de Beethoven
Marin Alsop – regente
Dias 12, 13, 14 e 15, Sala São Paulo