Piano Broadwood de 1797 veio da Escócia e será utilizado em gravações e concertos
Há 224 anos, chegava ao castelo de Fingask, na Escócia, um fortepiano Broadwood encomendado pela nobre família Murray-Threipland. O monarca da Grã-Bretanha era o longevo George III; o local, construído como abadia no século X, tinha sido confiscado nas lutas jacobitas, que buscavam a restauração da Casa dos Stuart à frente do reino escocês, e foi recomprado pelo médico Stuart Threipland, em 1783, para sua mulher Catherine Murray-Threipland. O belo instrumento, fabricado em 1797 e conhecido como square piano – pelo formato retangular –, ainda estava no castelo nos anos 1980 e foi arrematado num leilão pelo colecionador William Mowat-Thomson.
É com Thomson que começa a história da vinda recente desse instrumento para o Brasil. O pneumologista Fernando Antônio de Abreu e Silva estava fazendo PhD na Universidade de Edimburgo, em 1983, e, apresentado por um amigo comum, se deslumbrou com a casa de quatro andares recheada de objetos da era georgiana. “Os ambientes eram espetaculares”, lembra ele, que manteve a amizade com o colecionador até sua morte, em 2019. “E ali conheci esse piano. Fiquei absolutamente fascinado pela qualidade do som”, conta o médico, que toca piano (“ainda estou aprendendo, mas sou meio barbeiro”, brinca).
Abreu e Silva decidiu arrematar o instrumento e trazê-lo para o Brasil – e aqui o Broadwood aportou no mesmo ano, 2019. “A família me vendeu o piano por um valor módico, 500 libras”, diz. “Mas gastei dez vezes mais com a burocracia brasileira, que ainda levou um ano para liberar a vinda do instrumento.” Finalmente, em dezembro de 2020, a capela do sítio do médico na cidade de Charqueada recebeu o pianoforte. Para se tornar o “tutor” do Broadwood, o novo proprietário convocou o cravista Fernando Cordella – além de xará, seu conterrâneo e afilhado. “Tem sido uma emoção enorme”, diz o cravista.
Feito de abeto e pau-rosa, com teclas em marfim de excelente qualidade e em ótimas condições de conservação, o piano se torna, assim, o mais antigo Broadwood original do Brasil – provavelmente da América do Sul. O fabricante, John Broadwood, vinha da expertise da manufatura de cravos em 1760, e sua firma fez diversas inovações nos modelos de pianoforte existentes.
“Johann Christian Bach, filho de Johann Sebastian, compôs para o square piano; Beethoven tocava num Broadwood de modelo diferente e compôs num instrumento assim suas últimas sonatas”, lembra Cordella. “Embora o instrumento esteja realmente em bom estado, sem nenhum problema estrutural, vai passar por uma restauração comandada por William Takahashi. De todo modo, tive chance de experimentar o pianoforte e foi como se eu afinal entendesse o idioma da música da época. Viajei no tempo tocando peças que a gente tenta traduzir para o piano moderno, mas que funcionam esplendidamente na articulação do instrumento original.”
Johann Christian Bach, filho de Johann Sebastian, compôs para o square piano; Beethoven tocava num Broadwood de modelo diferente e compôs num instrumento assim suas últimas sonatas
Cordella chama de “dicção” essa diferença. “O Broadwood, digamos, fala todas as consoantes, emite precisamente aquela ‘palavra’ da música de sua época; seu mecanismo de martelos bem pequenos, de couro, permite ataques muito mais rápidos que a gente tenta fazer, e muitas vezes não consegue, no piano de hoje.” O cravista já havia tocado em réplicas do Broadwood: “Uma dessas cópias é de Paul McNulty, e eu cheguei a experimentar. Existem originais em museus como o Victoria and Albert, em Londres, e o Metropolitan, em Nova York. Mas grande parte dos instrumentos teve sua mecânica desfigurada e extirpada em tentativas de modernização no século XIX; muitos hoje são só enfeite”, lamenta. “Há Broadwoods no Museu Imperial de Petrópolis, mas já são bem mais recentes, de meados do século XIX, da época que se passou a industrializar os instrumentos.”
Fernando Abreu e Silva vai alojar o piano Broadwood na capela do seu sítio – de acústica privilegiada, onde já vinha promovendo concertos –, e sua ideia é democratizar seu uso. “Pretendo emprestar para gravações e concertos”, assegura o médico. “Minha intenção foi dar um presente ao Brasil; afinal, a música é o remédio do espírito. Um amigo que passou por problemas graves me assegurou que a cura veio de Bach. Nunca mais esqueci e concordo. Muitas vezes, é a arte que nos faz suportar as agruras da vida.”
Quando o calendário de eventos retornar, depois do tsunâmi pandêmico, o pianoforte Broadwood já estará restaurado e pronto para sua estreia. Fernando Cordella imagina o programa: “Colocaria sonatas de J. C. Bach, o Bach inglês; talvez a Fantasia em fá sustenido menor Wq67, mesmo sendo anterior à fabricação do piano; alguma sonata de Clementi, pois ele era amigo íntimo de Broadwood, e uma sonata de Beethoven para encerrar, é claro!”.