Obra de Alexandre Guerra o coloca como um dos mais interessantes criadores da cena musical brasileira
Vinte e dois concertos com onze orquestras diferentes em 2022. Dez álbuns gravados e mais dois a caminho no início deste ano. Alexandre Guerra, aos 51 anos, começa 2023 comemorando um público de 16 mil pessoas que assistiram, em outubro passado, ao espetáculo Lendas brasileiras, que unia dança, música, bonecos e contação de histórias. A trilha sinfônica da nova coreografia do Balé Teatro Guaíra, de Curitiba, foi encomendada a Guerra.
“No fundo”, diz ele, “a coisa que o compositor mais busca é contar suas histórias, principalmente por meio da música, e ser ouvido, ou a elas. Para fazer isso, sai a campo, como único soldado de seu próprio exército ‘brancaleonesco’, tentando cativar adeptos ou ouvidos afetivos”.
Ouvidos afetivos é o que não falta para essa música. Só em 2022, suas composições foram ouvidas em São Paulo, Porto Alegre, Brasília, Piracicaba, Manaus e também em Bucareste, Romênia, com orquestra local regida pelo brasileiro Claudio Cohen. Uma dessas execuções – a de Nailor Proveta ao sax-alto e a São Paulo Chamber Soloists – foi uma estreia mundial na Sala São Paulo. Guerra compôs uma suíte em seis movimentos inspirada nas gravuras de Oswaldo Goeldi. Intitulou-a Divagações sobre a noite. Foi sua obra que mais me impactou, entre as recentes. A fluência de escrita, o cuidado com as misturas de timbres tão diversos quanto as cordas e o saxofone alto e a qualidade de invenção que Guerra sempre injeta em suas composições o tornam um dos mais interessantes compositores da cena brasileira atual.
Ele está compondo sua primeira ópera, intitulada Santos Dumont, quando o sonho voa, direcionada para o público infantil. E também escreve peça encomendada pelo maestro Rodrigo Toffolo, da Orquestra Ouro Preto. O excelente André Micheletti será o solista na estreia de seu Concerto místico, ao lado da Orquestra Sinfônica de Piracicaba, regida por Knut Andreas. Duas gravações completam 2023, por enquanto: o pianista Fábio Martino, radicado em Berlim, grava um novo ciclo de piano solo composto especialmente para ele. O compositor vai registrar, com a Orquestra Sinfônica de Budapeste, dois poemas sinfônicos: O conde de Monte Cristo e A lenda do boto. E também deve ser lançada a gravação em que ele regeu sua suíte sinfônica As mulheres de Pablo Picasso com a Orquestra Sinfônica de Budapeste.
Duas perguntas para Alexandre Guerra:
O primado da música absoluta a partir de Beethoven jogou a música com motivação externa – aquela baseada, inspirada, motivada por um livro, um quadro, acontecimentos políticos ou por um personagem público etc. – em um patamar abaixo ou mesmo fora de seu Olimpo. Você concorda com essa leitura da história da música?
O sucesso, de certa forma, pode levar à exaustão por repetição. O poder das formas clássicas, especialmente a sonata, que a partir de Haydn abriu um céu de possibilidades, de variação e contraste dentro de uma coerência temática, começou a dar sinais de cansaço em meados do século XIX. Os compositores de então, em busca de inspiração e novos caminhos, talvez quisessem procurar a faísca motivadora para suas obras em outros quintais, livros, quadros, como você citou. Mais tarde, arrumaram um nome para isso: poema sinfônico, obra cuja forma se estrutura dentro de um programa fora das formas musicais clássicas. A música programática sempre existiu, na verdade, porque mesmo no período barroco a música já estava a serviço das missas, que tinham um roteiro, uma história para contar. E histórias, não há quem resista a elas. São um combustível poderoso para a imaginação.
O maestro John Mauceri, num livro polêmico recente, War on Music, afirma que os compositores pioneiros de trilhas sonoras para o cinema eram os refugiados europeus que seriam, caso o nazismo não os obrigasse a fugir, os compositores fundamentais da música europeia no século XX. Portanto, como aliás também raciocina Morricone (que integrou por 14 anos o grupo de vanguarda italiano Consonanza), não existe diferença de natureza entre a música aplicada e a música dita pura. Como você vê essa questão?
Erich Wolfgang Korngold já era Korngold antes de chegar a Hollywood, era o mesmo compositor que Mahler julgou um gênio aos 14 anos, quando o conheceu. No Brasil, não foi diferente – Camargo Guarnieri, Villa-Lobos, Claudio Santoro, entre outros, compuseram para o cinema e depois transformaram essas obras em música de concerto. Suíte Vila Rica de Guarnieri e O descobrimento do Brasil e A floresta do Amazonas de Villa-Lobos foram escritas originalmente para filmes. As fronteiras na música são fictícias, acho que não há necessidade de uma patrulha estética. As linguagens, assim como nós, estão aqui de passagem, tudo é impermanente. Gosto de pensar no compositor mais como artesão, não como artista. Estamos sempre a serviço, seja de nossas demandas mais pessoais, seja do meio que pode empregar nossa música. E isso não é novidade. O teatro de sombra chinês do século II já comissionava música original para suas apresentações, assim como a tragédia grega pela arte da melopeia ou a Igreja luterana para a qual Bach compôs dezenas de missas. O cinema, a televisão, a internet são apenas meios aos quais a música pode ser associada. Os meios mudam, o que fica é nossa memória afetiva e as melodias que colecionamos no caminho.