“Não pareço um cantor de ópera, pareço?” O comentário vem com uma risada, e uma dose exata de ironia, apesar do tema sério – Michael Fabiano falava da necessidade de se repensar completamente o modo como o mercado da ópera está organizado. Mas falemos disso daqui a pouco. Antes, a informação: o tenor americano, estrela da ópera internacional, canta neste domingo, dia 25, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, dentro da série Grandes Vozes, com a orquestra do teatro e regência de Ira Levin.
Quando conversou com o Site CONCERTO, na semana passada, Fabiano estava em Londres, preparando-se para ir a Edimburgo, onde cantaria The Kingdom, oratório em que o compositor Edward Elgar retrata os apóstolos de Cristo, com a Hallé Orchestra. “É uma peça fenomenal, representativa do estilo de Elgar, mas também, e principalmente, de um conflito que marcou sua vida toda, o conflito de um homem profundamente católico em uma Grã-Bretanha protestante. Sua música é fascinante: um pós-romantismo que se aproxima de Wagner. É um autor que deveria ser mais tocado, para além de suas peças mais óbvias e conhecidas.”
No Rio de Janeiro, no entanto, ele vai interpretar uma seleção de árias de Verdi, Puccini, Massenet, Mascagni, Leoncavallo e Tchaikovsky. “É aquilo que canto com mais frequência”, ele diz. Também fará, nesta quinta, uma master class com jovens cantores brasileiros. E qual a mensagem que pretende passar aos alunos? “Nenhuma, na verdade. Cada cantor é diferente, cada cantor tem uma necessidade específica. O meu objetivo é descobrir o que cada um tem de especial e ajudá-lo a amplificar essa característica, torná-la ainda mais evidente. ”
Nascido em Nova Jersey, em 1984, Fabiano jogou baseball na escola, onde foi também líder da equipe de debates. Estudou canto na Universidade de Michigan com George Shirley – e suas primeiras aparições foram na Ópera de Santa Fé. Em 2006, cantou pela primeira vez no Carnegie Hall; dois anos mais tarde, veio a estreia no Scala, em Gianni Schicchi, com Riccardo Chailly. Em Nápoles, cantou La traviata e Madama butterfly e foi aos poucos pisando nos principais palcos europeus e americanos em La bohème, Rigoletto, Lucia di Lammermoor, Fausto. Em 2014, ganhou o Prêmio Beverly Sills, do Metropolitan Opera de Nova York, e o Prêmio Richard Tucker.
Essa é a biografia resumida – que inclui ainda o gosto por pilotar aviões, a criação da Fundação ArtSmart, que oferece aulas gratuitas para alunos que não têm condição de pagar por elas, e a defesa dos direitos LGBT: ele se casou no ano passado com Bryan McCalister em uma cerimônia realizada no Metropolitan Opera. E, no segundo semestre, o tenor abre a temporada do teatro cantando em Manon, de Massenet, além de estrelar na produção da Ópera de Paris do Don Carlo, de Verdi.
“Quando somos jovens cantores, o mais importante é aprender a identificar nossas limitações, estabelecer limites”, ele diz. “É como decolar um avião. Você precisa checar o peso e o equilíbrio. Se eu não calculo isso, o avião não sai do chão. Com o cantor, acontece o mesmo. Se você não conhece suas limitações físicas, não é honesto com você mesmo, não tem como desenhar uma carreira. E, uma vez que você faz isso, então está pronto para ir bem próximo desse limite e correr alguns riscos. Porque não dá para ser cuidadoso demais. Sempre se pergunte o quão mais longe você pode ir.”
Tudo isso é para falar do acréscimo de papeis como Des Grieux, em Manon, ou Don Carlo, em seu repertório. “Eu sempre cantei um repertório mais agudo, mas eventualmente a voz me ofereceu a possibilidade de enfrentar papeis mais pesados, em que o centro de gravidade é mais baixo. Então resolvi seguir esse caminho. Mas, veja, para enfrentar um processo como esse, navegar por uma voz em transformação, precisamos ter a mente aberta para entender que durante um tempo, enquanto estudamos, nos preparamos, talvez a voz não vá soar de maneira tão espetacular como gostaríamos, e não há problema nenhum nisso.”
Para Fabiano, uma questão, no entanto, é fundamental. A capacidade de se relacionar com os papeis que interpreta – condição para que as interpretações soem naturais, novas. “Sempre tento encontrar um eco em minha vida pessoal. Quando canto Werther, por exemplo, eu me lembro de quando me apaixonei loucamente por alguém, não porque fosse bonito, mas pela pessoa que era. E da dor que senti pela pessoa não estar disponível. Hoje, estou em outro momento, mas já passei por isso e consigo acessar a lembrança da intensidade daquele sentimento”, explica. “Eu já fui traído, como Des Grieux, e sei o que senti naquela época. Com Don Carlo, a lembrança é daquele primeiro momento em que a paixão se revela e como é terrível não poder vivenciá-la.”
Como prometido, chegamos ao mundo da ópera – e às visões de Fabiano a respeito dele. Para o tenor, o desafio é a constante desmitificação da noção de que a ópera é uma forma de arte elitista, o que se faz com ousadia e novas ideias. E, diz Fabiano, há cinco aspectos que merecem atenção particular neste processo.
O primeiro deles tem a ver com o “empoderar jovens gestores”. “Jovens que nasceram em um mundo já diferente, e cresceram nele, precisam chegar a postos de liderança – e rápido. Há um grupo de gestores que se revezam à frente dos teatros e que impedem a chegada de pessoas que estão naturalmente mais conectadas às demandas de uma nova geração, que consome e se relaciona com a arte de modo diferente.”
Dois. “Temos que fazer um trabalho muito melhor na construção da relação com novos públicos. Não adianta trabalhar com aqueles que têm de 18 anos em diante. É preciso trabalhar com crianças de 6 anos, com adolescentes. Eles precisam crescer entendendo que a ópera pode fazer parte da vida deles assim como a música popular. E nós, cantores, temos que participar disso, reivindicando projetos como esses e também estando disponíveis para falar com esse público, no palco e fora dele.”
Três. “Como podemos falar com o público de uma maneira diferente? É uma questão de marketing mesmo. As pessoas dizem que óperas são longas. Mas não se incomodam de sentar na frente da televisão e assistir vários episódios de uma série de uma só vez. Por que não podemos dizer, por exemplo, que ir a La bohème é como ver três episódios de Orange is the new black? Esse é só um exemplo. É muito importante um esforço de marketing que leve em consideração elementos da cultura contemporânea.”
Quatro. “Será que o modo como produzimos ópera é o melhor, quer dizer, o sistema de repertório, com ópera todo dia, ou o de stagione, com alguns espetáculos por ano? E se pensássemos em festivais nos quais pudéssemos unir várias montagens em um período relativamente curto, de maneira densa, tornando a ópera uma experiência de imersão, em eventos como Woodstock. Será que o público, em especial o mais jovem, não se relacionaria com o gênero de uma maneira diferente?”
Cinco. “Há a questão também dos preços dos ingressos. Ok, vamos manter o sistema de produção como ele é hoje, tudo bem, repertório ou stagione. Mas temos que cobrar diferente. As assinaturas, por exemplo. Ninguém decide hoje com mais de 24 horas de antecedência o que vai fazer. E, mesmo que resolva ir à ópera, quando se depara com um ingresso de US$ 200, acaba desistindo. Que tal um preço dinâmico, baseado em oferta e procura? E o público que quer ingresso mais barato tem que ser tratado bem. Por exemplo: a pessoa que vai ao teatro quatro, cinco vezes, pagando US$ 30 pelo ingresso, poderia receber, depois de um tempo, como cortesia, um ingresso para um lugar mais caro. A fidelidade do público tem que ser valorizada em todos os setores.”
Se diz que não soa como um cantor de ópera, é porque Fabiano entende que a imagem do cantor se transformou. “Aquela imagem da Callas, elegante, descendo do avião para cantar em uma cidade, aquele glamour, aquilo pertence à era dos grandes ícones. E isso não existe mais. A interação social hoje é diferente. E os cantores deveriam levar isso em consideração. Levei um grupo de amigos do mundo dos negócios ao Metropolitan para assistir La bohème e quis ouvir deles um feedback. Adoraram a ópera, mas acharam a experiência em si formal demais. Por exemplo, se você sai do Met e quer comer alguma coisa, a opção que o teatro te dá é um jantar elegante, formal. Por que não ter um bar ali do lado, um carrinho de hambúrguer, de cachorro-quente, de cerveja? A pessoa sai da ópera, encontra-se com outros membros do público, conversa com eles sobre a performance. E se os cantores também passassem por ali? Tudo isso gera um sentido de comunidade que a ópera perdeu. Esse tipo de interação pode mudar a chave na maneira como as pessoas entendem o gênero. E é disso que precisamos imediatamente. Há questões reais e respostas possíveis, mas para inovarmos precisamos fugir de administrações tediosas. E infelizmente ainda estamos presos a elas.”
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