Volume 22

por Redação CONCERTO 07/06/2024

Vol 22

LORENZO FERNANDEZ

1-3 Reisado do Pastoreio (1930)
4-7 Sinfonia nº 1 (1945)
8-11 Sinfonia nº 2 (1946-47)

Orquestra Filarmônica de Minas Gerais
Fabio Mechetti – regente


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Contracapa CD


Texto do encarte do CD

Oscar Lorenzo Fernandez (1897–1948)
Sinfonias nºs 1 e 2 'O Caçador de Esmeraldas' • Reisado do Pastoreio

Oscar Lorenzo Fernandez (Rio de Janeiro, 1897–1948) foi um brasileiro de primeira geração de ascendência espanhola. Teve uma carreira de muito sucesso, mas faleceu com apenas 50 anos, no auge da fama como compositor, maestro e professor. Apesar da sua morte prematura, deixou para a posteridade uma obra relativamente grande e variada, desde canções (48 no total) a óperas, e desde música de câmara a poemas sinfónicos e concertos (para piano e violino). Inquieto e dinâmico por natureza, Lorenzo Fernandez foi também uma das figuras-chave da vida cultural do Rio de Janeiro em geral: liderou diversas iniciativas, incluindo a fundação da Sociedade de Cultura Artística, do jornal musical Ilustração Musical e do Conservatório Brasileiro. de Música, cujo trabalho ocorreu em diversos locais da cidade e de outros lugares do Brasil, além de apoiar Villa-Lobos na criação da Academia Brasileira de Música.

Até os 25 anos, Lorenzo Fernandez escreveu música em estilo neo-romântico, com algumas influências impressionistas. Em 1922, porém, o festival conhecido como Semana de Arte Moderna ('Semana de Arte Moderna') aconteceu em São Paulo, anunciando uma mudança significativa na direção da arte brasileira. Os intelectuais e artistas que lideraram este novo movimento defenderam trabalhos que se inspirassem nas próprias tradições culturais do país. Neste contexto, "moderno" significava antes de tudo arte "autenticamente brasileira". Lorenzo Fernandez abraçou esta nova estética, imbuindo a sua produção com um forte sentido de nacionalismo musical. Ao contrário de seu rebelde contemporâneo e amigo Villa-Lobos, porém, ele conciliou suas novas cores nacionalistas com a tradição clássico-romântica.

Seu primeiro grande sucesso foi o poema tom Imbapara de 1929, obra que evoca a cultura dos povos originários do Brasil através do uso de temas indígenas coletados pelo antropólogo Edgar Roquette-Pinto. Encorajado pela sua calorosa recepção, Lorenzo Fernandez decidiu em 1930 explorar elementos afro-brasileiros em outra obra orquestral, Reisado do Pastoreio ('A Pastoral Epiphany'). Esta suíte sinfônica em três movimentos foi estreada no Rio de Janeiro sob a batuta do então decano da música brasileira, Francisco Braga. O primeiro andamento, Reisado ¹ ('Epifania'), tem um carácter rústico, com o ritmo de um cavalo a trotar pelo campo representado pelos instrumentos baixos e utilizado como base para os solos das diferentes secções que conduzem ao clímax. Tudo isto é precedido por uma breve introdução que apresenta o som pastoral da flauta, seguido de escalas ascendentes. A coda retorna ao ambiente da introdução, conferindo ao primeiro movimento um equilíbrio formal que era um traço consistente da música de Lorenzo Fernandez. No segundo movimento, Toada ('Canção'), as cordas do pizzicato servem de base rítmica para os motivos sincopados tocados por sopros e metais. O compositor continua evocando a atmosfera de uma paisagem rural brasileira. O terceiro e último movimento, Batuque (uma dança), é frequentemente tocado como uma peça independente e foi programado por maestros renomados como Toscanini, Koussevitzky, Bernstein e Chávez. Seu caráter dançante, ar afro-brasileiro e intensidade rítmica hipnótica, juntamente com sua extrema concisão melódica, contribuem para o sucesso deste final. A sua origem como dança africana (como indica o seu subtítulo) explica o seu poder primordial. O movimento rítmico é introduzido por cordas graves e percussão, com cinco notas ascendentes alternadas com notas repetidas, como batidas de tambor. Este primeiro motivo é seguido por um segundo, em movimento contrário. Acima disso, os sopros e, sobretudo, os metais tocam melodias em notas longas. A percussão tem um papel fundamental, ajudando a criar um caráter extático que leva ao clímax. Depois disso, o clima de abertura retorna, mas em ritmo cada vez mais acelerado e com maior participação da percussão (caixa, bumbo, prato, tam-tam e piano) à medida que a música chega ao seu final frenético.

A Sinfonia nº 1 de Lorenzo Fernandez foi escrita em 1945 e é representativa de sua terceira fase, na qual ele abandonou um idioma explicitamente nacionalista. Ouvintes atentos, porém, perceberão reminiscências inconscientes de suas raízes brasileiras. No ano de sua estreia, o Brasil estava saindo do longo período político centralizado conhecido como Estado Novo, e o mundo em geral estava entrando no período pós-guerra. Lorenzo Fernandez também procurava novos rumos e também foi influenciado, embora de forma tênue, por Bartók, que morreu em 1945. Sem abrir mão totalmente da inspiração local, portanto, ele mudou para uma linguagem mais universalista. Sua orquestração é densa e seus temas vigorosos. O movimento de abertura começa com uma introdução lenta da trompa solo, com resposta das cordas. Segue o padrão de forma sonata, seu primeiro tema é rápido e o segundo é mais moderado em ritmo. No segundo movimento, intitulado Allegro vivo e scherzoso , um ritmo animado de ostinato torna-se cada vez mais denso à medida que se desenvolve, com alguns momentos mais rarefeitos. Aqui sentimos o compositor do Batuque , mas operando numa dimensão mais universal. Em contraste, a seguinte Lentamente evoca uma atmosfera que oscila entre o mistério e a tragédia. O final do Allegro energético começa com uma introdução majestosa das trompas em uníssono, respondida por solo cor inglês. Segue-se o movimento propriamente dito, o mais vibrante dos quatro, com carácter rapsódico e densa orquestração com metais e percussão. Dá a impressão de que o compositor fez questão de anunciar uma nova era para o Brasil e para o mundo.

A Sinfonia nº 2 de Lorenzo Fernandez de 1947 foi inspirada nas façanhas do explorador brasileiro do século XVII Fernão Dias Paes Leme (1608-1681), conforme narrado em 276 Alexandrinos (versos de 12 sílabas) pelo grande poeta brasileiro Olavo Bilac (1865). –1918). Seu poema O Caçador de Esmeraldas - 'O Caçador de Esmeraldas' - dá subtítulo à Sinfonia nº 2 e conta a jornada do lendário homem da fronteira para descobrir minas de esmeralda no interior do Brasil e os desafios que enfrentou devido ao clima, aos ataques dos índios e ao desafio de membros de seu próprio grupo à medida que a expedição avançava "na floresta escura, em cujas profundezas impenetráveis ​​apenas corria a anta veloz e a onça feroz rugia". Aqui está apenas uma das 46 estrofes de seis versos que compõem o poema de Bilac:

Sete anos! Combatendo índios, febres, malária,
feras, répteis – afastando os homens das montanhas,
vencendo a fúria de seus companheiros amotinados...
Sete anos! E aqui está ele, finalmente de volta, com seu tesouro!
Com que carinho ele segura contra o peito a bolsa de couro aberta, repleta de
pedras verdes! – ele voltou...

No entanto, após sete anos de expedição, o ambicioso explorador foi acometido de febre e morreu na selva, ainda segurando seu saco cheio de esmeraldas. Lorenzo Fernandez usou o enredo do poema de Bilac como base para sua sinfonia em quatro movimentos, tornando-a uma obra programática em vez de um poema sinfônico. À medida que a música avança, ele evoca atmosferas de esperança, heroísmo, luta, descoberta, delírio e morte.

Ecoando a história de Fernão Dias Paes Leme, em 1948 Lorenzo Fernandez morreu segurando – figurativamente falando – esta partitura final contra o peito, não tendo vivido o suficiente para ouvir a sua estreia. Sua morte deixou um enorme vazio no cenário da música clássica brasileira.

Ricardo Tacuchian
Academia Brasileira de Música


Orquestra Filarmônica de Minas Gerais
Fundada em 2008 e sediada na Sala Minas Gerais de Belo Horizonte, a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais tornou-se uma das organizações culturais de maior sucesso do Brasil, sob a direção do diretor artístico e maestro titular Fabio Mechetti. Seus 90 integrantes vêm da Europa, Ásia e Américas, bem como de todas as regiões do próprio Brasil.
A orquestra recebeu diversos prêmios e distinções, incluindo o Grande Prêmio da revista CONCERTO (2015, 2020), o Prêmio Carlos Gomes de melhor orquestra brasileira (2012) e foi eleita o conjunto de música clássica do ano (2010) pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).
Apresenta diversas séries de concertos, eventos educacionais e apresentações ao ar livre, além de realizar turnês regionais, nacionais e internacionais. Sua discografia inclui três gravações anteriores da série A Música do Brasil na Naxos – álbuns de músicas de Nepomuceno (8.574067), Almeida Prado (8.574225) – este indicado ao Grammy Latino em 2020 (categoria Melhor Álbum Clássico) – e Edino Krieger (8.574408). www.filarmonica.art.br.   

Fabio Mechetti
Fabio Mechetti é diretor artístico e regente titular da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais desde sua fundação. Sob sua direção, a orquestra recebeu diversos prêmios, gravou dez álbuns, incluindo vários para o selo Naxos, e realizou uma turnê pela América do Sul. Em 2014, tornou-se o primeiro diretor musical brasileiro de uma orquestra asiática ao ser nomeado regente titular da Orquestra Filarmônica da Malásia.
Nos EUA, Mechetti regeu a Sinfônica de Jacksonville por 14 anos e hoje é seu maestro emérito. Ele também atuou como diretor musical da Orquestra Sinfônica de Syracuse e da Sinfônica de Spokane; maestro residente da Sinfônica de San Diego; e regente associado, sob a orientação de Mstislav Rostropovich, da Orquestra Sinfônica Nacional de Washington, D.C. Além de fazer sua estreia no Carnegie Hall com a Sinfônica de Nova Jersey, ele foi regente convidado de várias outras orquestras norte-americanas e internacionais.
Natural de São Paulo, tem mestrado em regência e composição pela The Juilliard School e venceu o concurso internacional Malko para jovens regentes na Dinamarca em 1989.


CRÍTICAS

Não nos damos conta da importância do projeto A Música do Brasil, do Ministério das Relações Exteriores em parceria com o selo Naxos, que vem registrando pela primeira vez o rico itinerário histórico das formas sinfônicas brasileiras. O acervo parcialmente disponível já modificou nossa compreensão do gênero no país. Outro mérito paralelo é disponibilizar, em condições técnicas e artísticas de primeira qualidade, a produção brasileira.

Rodolfo Coelho de Souza me contou há bastante tempo que, quando estudava nos Estados Unidos, alguém num concerto com obras de Villa-Lobos disse que não conhecia aquele “compositor norte-americano”. Bem, se até o Villa é confundido, imaginem nomes mais caseiros, como Lorenzo Fernandez (1897-1948). Seu nome é mundialmente conhecido por apenas um movimento de uma suíte. Estou falando do Batuque, da suíte Reisado do Pastoreio, que foi regido por nomes ilustres da batuta internacional, como Toscanini, Koussevitzky, Bernstein e Carlos Chávez. 

Até especialistas em música de concerto da América Latina apenas listam o Batuque e as duas sinfonias de Fernandez. À musicóloga Carol Hess, por exemplo, no quinto volume da série The Symphonic Repertoire, dedicado às Américas, só concederam pouco menos de 200 páginas para cobrir o chamado sul das Américas,  enquanto a música nos EUA ocupa mais de 700 páginas. Ela só lista as duas sinfonias de Lorenzo Fernandez. Portanto, vivemos um período de descobertas, Se aqui já causa espanto a qualidade da música de compositores como Lorenzo Fernandez, imaginem no resto do planeta. A academia, como sempre, virá a reboque.

Vamos à gravação, excepcional, da Filarmônica de Minas Gerais, que recentemente sofreu um ataque absolutamente maluco que pretendia asfixiá-la – ataque do qual ela, já amplamente legitimada junto não só a Minas Gerais, mas a todo o país, safou-se graças a ações corajosas da mídia e também do maestro Fabio Mechetti, num texto memorável.

Como para entender melhor sua música é preciso mergulhar no contexto modernista no qual ele atuou, reproduzo a seguir parte de um artigo de Mário de Andrade de 1934 que define bem o compositor: “Lorenzo Fernandez é, no momento, uma das mais altas figuras da música brasileira. No seu grupo de geração, já caracteristicamente especificado da musicalidade artística nacional, grupo que contém ainda Villa-Lobos e Luciano Gallet, ele representa, mais que os outros, o lado conhecimento técnico, o lado por assim dizer ‘acadêmico’, desde que se tire desta palavra a significação odiosa.(...) A sua criação não tem aquelas invenções arroubadas com que Villa-Lobos dispensa a técnica pra criar uma possível 'técnica' que só a boniteza da obra parece justificar. (...) Muito embora usando as conquistas da técnica musical do nosso tempo, se compraz em adaptá-las com segurança, onde elas sejam duma lógica imprescindível, como que indispensáveis”, escreve ele em Música e jornalismo.

Vasco Mariz, em sua História da música brasileira, diz que ele foi “um compositor bem comportado” pelo equilíbrio entre sua formação musical tradicional e  a novidade do modernismo brasileiro. De fato, em dois artigos, de 1930 e 1931, Fernandez elaborou, e poucos se dão conta disso hoje, as bases do pensamento educacional nacionalista na música. Sérgio Nepomuceno afirma que “ele foi o mentor teórico das ideias, enquanto Villa-Lobos, graças ao prestígio que auferia junto a Vargas, [foi] seu autor pragmático, ensinava a cantar e reger para imensas concentrações estudantis”. 

Villa não era chegado em teorias, Lorenzo foi o parceiro ideal em seu projeto educacional bancado por Getúlio. As ideias básicas foram formuladas por ele: formação de corais infantis, ensino obrigatório de teoria e solfejo. Em suma: “nacionalização e desenvolvimento intensivo e extensivo da Arte, que é a cúpula cultural de todos os povos”. Em 1932, ajudou Villa na implantação da SEMA – Superintendência de Educação Musical Artística do Distrito Federal.

Agora podemos ouvir as duas sinfonias que ele compôs pouco antes de morrer, entre 1946 e 47. São dois os espantos, para quem nunca as escutou. Primeiro, ele tinha um metiê da escrita orquestral bastante refinado, amadurecido, segundo as melhores regras clássicas. Segundo, jamais ultrapassou os limites da América do Sul e foi dos raros compositores brasileiros que jamais estudaram fora do país, o que o tornou ainda mais desconhecido no outrora chamado Primeiro Mundo. Ou seja, sua música é correta, acadêmica, mas no bom sentido, como acentua Mário. 

Dois exemplos. O último movimento da Sinfonia nº 1, um “Allegro energico”, na feliz expressão de Tacuchian, “dá a impressão de que o compositor fez questão de anunciar uma nova era [pós-Estado Novo/pós Segunda Guerra] para o Brasil e para o mundo”.

A Sinfonia nº 2 baseia-se no poema de Bilac contando as façanhas de Fernão Dias Paes Leme, bandeirante caçador de esmeraldas (e de indígenas) do século XVII. Experimente escutar algumas vezes o encorpado primeiro movimento, um Allegro moderato e pesante (Energico), em que ele mantém o interesse por meio de uma escrita refinada, introduzindo-nos no universo ao mesmo tempo misterioso e viril de Paes Leme. O compositor Ricardo Tacuchián, no preciso texto do encarte do álbum, escreve que as duas sinfonias, ambas compostas após o final da Segunda Guerra Mundial, já respiram ares mais universalistas, menos nacionalistas.

Aliás, e apesar de ser um dos pilares do modernismo nacionalista capitaneado pelo vulcânico Villa no Estado Novo, ele manteve-se firme em seus propósitos criativos, como neste balanço que fez em 1942 sobre a Semana de 22, vinte anos depois: “Dizer que somos modernistas é bobagem. O que somos é atuais. Já se viu que o modernismo não existe. Isto não quer dizer que se possa fazer todos os cabotinismo e todas as maluquices em nome da Arte atual. Os que as fazem não são artistas, são palhaços aproveitadores. É preciso muita seriedade. Não se deve brincar com a arte. Esses tolos que fazem umas coisas sem técnica, nem método, nem forma, e dizem que é modernismo, são tudo o que quiserem, menos  artistas. A primeira necessidade do artista atual é ser um perfeito mestre da técnica, conhecer tudo o que se fez. Só então poderá verdadeiramente dar um passo para a frente. O que se chama por aí de modernismo foi o movimento de democratização da arte. Nós demos o brado de liberdade. Acabar com todos, os ídolos, as tiranias, no campo da arte. A arte moderna, como se entende vulgarmente, é isso. Liberdade para o artista!”.

Por João Marcos Coelho
Publicada no Site CONCERTO em junho de 2024

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