Em um mundo de sonho, a recusa de qualquer verdade

por João Luiz Sampaio 15/08/2022

 Após a estreia de Salomé e Elektra, a chegada de O Cavaleiro da Rosa desinflou os ânimos de quem imaginava Strauss como o grande sucessor de Richard Wagner. Nas duas primeiras, a linguagem musical ousada, a temática a aproximar desejo e morte, prazer, medo e angústia, tudo parecia apontar para frente. E então o compositor e seu libretista Hugo von Hofmannsthal apareciam com uma obra que evocava Mozart, uma comédia de salão sobre um triângulo (ou quadrado) amoroso ambientada na Viena do século XVIII.

De lá para cá, O Cavaleiro da Rosa passou a ser visto pelo que de fato é: uma reflexão sobre o tempo, em que nada parece de fato ser o que se mostra, nem mesmo a nostalgia, que é menos celebração da memória e mais a certeza de sua impossibilidade: o que de fato é possível lembrar se o “eu” é, na verdade, uma projeção da forma como o mundo nos vê?

Lawrence Kramer, em Opera and Modernity, vai além – e insere O Cavaleiro da Rosa na sequência iniciada por Salomé e Elektra. Como acontece nelas, ele escreve, a transgressão – a traição da Marechala, as artimanhas para impedir o casamento de Ochs com Sophie – nada tem a ver com a altivez romântica do sentimento amoroso. O desejo, em vez disso, limita-se à sua base erótica, material, carnal. Não há transcendência.

É nesse trabalho de ambientação que o diretor Pablo Maritano se sai particularmente bem na produção da ópera que esteve em cartaz ao longo da última semana no Theatro Municipal de São Paulo. Transformar os objetos de cenas em móbiles que sobem e descem (assinados por Desirée Bastos) permite a ele se focar menos no contexto histórico e mais no universo interior dos personagens, às voltas com um mundo (ou uma percepção de mundo) fluida, onírica.

Ao mesmo tempo, soluções como deixar a Marechala sozinha no palco vazio no final do primeiro ato dão aos sentimentos dos personagens ares concretos (com excelente desenho de luz de Aline Santini). Nessa chave, entre o que é, o que parece ser e o que não se nomeia, é que o diretor atinge um resultado em muitos sentidos mais interessante (ajudado pelo visagismo de Tiça Camargo e os figurinos de Fabio Namatame), por menos preocupado com o contexto histórico como algo a ser evidenciado no palco, do que na produção anterior, de 2018 – os cenários originais se perderam e Maritano aproveitou a necessidade de reconstrução para repensar sua concepção, como disse em entrevistas sobre a montagem.

(Aqui caberia um parênteses sobre a dificuldade de se estabelecer de fato um sistema racional de produção; mas ele seria grande demais)

Exuberância

Valsas para retratar uma Viena na qual não existiam valsas. Para oficializar propostas de casamento, a entrega da rosa – um ritual vienense que nunca existiu. Um tom wagneriano que parece relativizar a influência de Wagner no contexto do pós-romantismo, correndo de volta para Mozart. Uma ária italiana belíssima, totalmente fora de contexto e sem importância alguma para o desenrolar da história (ainda que, na voz de Atalla Ayan, tenha sido um dos momentos mais especiais do espetáculo).

Há muita ironia em O Cavaleiro da Rosa. E, na leitura do maestro Roberto Minczuk à frente de uma excelente Orquestra Sinfônica Municipal, ela aparece por meio da exuberância, das valsas bem-marcadas, do lirismo entrecortado.

Tudo é muito claro e, por isso mesmo, também na partitura, nada parece ser o que é. Talvez se explique por aí o andamento do trio entre Sophie, Octavian e a Marechala, no último ato. Afinal, interpretá-lo de forma tão lenta estica a música e tira qualquer noção de lirismo de uma passagem que se pretende lírica. Mas, nesse momento, o tiro erra o alvo. Pois o lirismo de Strauss não é nunca óbvio ou sem sentido dramático – e, aqui, vem misturado com nostalgia, melancolia, angústia, desejo.

O baixo Hernan Iturralde encarna o Barão Ochs como uma evocação da figura do baixo bufo da ópera cômica italiana, mas sem abrir mão de uma dose bem medida da decadência do personagem. 

O que nele é presença, na Marechala de Carla Fipcic é ausência. Sua interpretação é feita de sutilezas, como se ela nunca estivesse de fato no palco, mas, sim, presa em si mesma. Seu “Ja, Ja” no final da ópera, quando concorda com o comentário de Faninal sobre o amor entre jovens, é dilacerante. Não é resignação, aceitação. É o som de algo se quebrando.

A Sophie da soprano Lina Mendes é delicada, sutil, em contraponto interessante ao Octavian de Luisa Francesconi. Na caracterização da mezzo soprano, o jovem torna-se muito rico à medida em que, cenicamente e vocalmente, ganha maturidade, com uma exploração interessante de coloridos. A paixão adolescente pela Marechala é substituída não pelo amor por Sophie, mas pela capacidade de tramar para manter perto de si o objeto do desejo.

E a ópera então termina com uma troca derramada de juras de amor entre os jovens. “Só sinto você e que nós dois estamos juntos”, diz Octavian. E Sophie completa: “é um sonho, estamos juntos por todo o tempo e a eternidade, não pode ser verdade”. 

Tenho a sensação de que Strauss e Hofmannsthal não se incomodariam se achássemos que talvez não fosse mesmo.

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Carla Filpcic e Luisa Francesconi em 'O Cavaleiro da Rosa' [Divulgação/Stig de Lavor]
Carla Filpcic e Luisa Francesconi em 'O Cavaleiro da Rosa' [Divulgação/Stig de Lavor]

 

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A execução musical de "O Cavaleiro da Rosa" foi bastante competente e satisfatória. Quanto à encenação, o Municipal, mais uma vez, demonstrou uma tendência a uma pseudomodernidade sem nexo e de mau gosto. Não sou contra a modernização das montagens operísticas, mas é preciso que elas sejam feitas com inteligência, coerência e bom gosto. Lembro-me de uma "Deidamia", de Handel, feita em Hamburgo, em que Ulisses chega à procura Aquiles num submarino, mas a cena é de uma coerência e uma beleza incríveis. Já o Municipal insiste no mau gosto: veja-se a última montagem da "Aida", de Verdi. Uma das coisas mais feias e kitsch a que já assisti. Neste sentido, o São Pedro tem sido muito mais criativo; com exceção da última montagem de "I Capeletti e Montechi", suas criações têm primado por encenações de uma simplicidade criativa e de bom gosto. Valter Lellis Siqueira

Gostei muito da encenação que, apesar da simplicidade, teve uma grande força e beleza. E essa ideia de subir e descer os elementos deu a dinâmica que o espetáculo necessita. Também achei a música bem tocada e cantada, e o melhor foi o Barão Ochs. Parabéns a todos!

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