Memórias de Canudos no Festival Amazonas de Ópera

por João Luiz Sampaio 23/05/2023

MANAUS – Piedade, de João Guilherme Ripper, tem sido apresentada com regularidade desde sua estreia, em 2012. E isso, para uma ópera contemporânea, não é apenas raro: também confirma a importância que a entrada no repertório tem na compreensão da obra, que ao ser relida mostra novas potencialidades.

Piedade estreou em 2012, com a Petrobras Sinfônica, em concerto cênico dirigido por André Heller-Lopes. Em concerto, foi apresentada no Theatro Municipal de São Paulo em 2018, quando também subiu ao palco da Sala Cecília Meireles em encenação de Daniel Herz, mas em formato de câmara (versão em que foi apresentada também no Teatro Colón de Buenos Aires, em 2017 e 2018). O Theatro Municipal do Rio de Janeiro apresentou a peça no mês passado, em concerto cênico dirigido por Daniel Salgado. A produção estreada no domingo no 25º Festival Amazonas de Ópera é, assim, a primeira encenação de fato, com músicos no fosso, da versão para grande orquestra.

A obra tem como fio condutor a história do triângulo amoroso entre Euclides da Cunha, autor de Os Sertões, sua mulher Anna da Cunha e seu amante Dilermando de Assis. O desfecho é trágico: no bairro de Piedade, Euclides, tomado por ciúmes, vai atrás de Dilermando, tenta matá-lo, mas acaba morrendo na troca de tiros.

O nome de Euclides da Cunha está intimamente ligado à publicação de Os Sertões, ou melhor, ao impacto que a presença em Canudos lhe causou e que ele tentou narrar. Há indignação em seu texto, que vem da descoberta de um Brasil distante e desconhecido para a intelectualidade do sudeste e do sul, marcado pela opressão e exploração. A “imaginação ardente com que acentuou os traços da realidade”, nas palavras de Antonio Candido, é reveladora tanto do desejo de provocar reações no leitor como janela pela qual podemos observar a marca que os acontecimentos deixaram no autor.

Assim, ainda que não seja parte da história, é interessante como Ripper utiliza Canudos para recriar a figura de Euclides. Antes mesmo dos fatos da ópera, é um Euclides atormentado que sobe ao palco. Quando encenou a obra, Daniel Herz utilizou um coro cênico que reproduzia os homens e mulheres de Conselheiro, dando forma visível à memória do escritor. Aqui, Julianna Santos vai em outra direção. Euclides está só no palco, às voltas com as lembranças da guerra – e a loucura e a obsessão, talvez paradoxalmente, mas por isso mesmo, se tornam muito mais palpáveis, uma vez que temos apenas o canto e a interpretação como janela aberta para esse mundo interior que parece fraturado.

Homero Velho e Gabriella Pace em cena de "Piedade" [Divulgação]
Homero Velho e Gabriella Pace em cena de "Piedade" [Divulgação]

Isso não significa a ausência, do ponto de vista visual, da guerra, que está representada nas projeções sobre o cenário de Giorgia Massetani. É um elemento que se soma à construção de planos distintos, que dividem o palco de maneira sutil e inteligente, pois permite à diretora construir momentos e percepções diferentes da história, a partir de cada um dos personagens. Um recurso eficiente e simples em seu virtuosismo e artesanato.

O barítono Homero Velho criou o papel de Euclides e o tem cantado nos últimos dez anos, o que dá à sua interpretação uma dimensão profunda. É um artista maduro, em contato com seus recursos cênicos e vocais, que utiliza de modo orgânico. Como Anna, a soprano Gabriella Pace trabalha contrastes interessantes. Se Dilermando e Euclides simbolizam uma masculinidade a que poderíamos chamar hoje de tóxica, é a ela que a ópera oferece espaços de reflexão sobre a trama, inclusive com a ária final do espetáculo. Por sua vez, na voz do tenor Daniel Umbelino, Dilermando ganha uma leitura acima de tudo lírica – sua Seresta, no início da terceira cena, acompanhada pelo violão de Paulo Pedrassoli, foi com razão aplaudida com entusiasmo pela plateia.

Ripper constrói a partitura de Piedade de modo original. Cada cena é aberta por um prelúdio para violão solo, cuja escrita evoca uma sonoridade da época em que a história se passa e, ao mesmo tempo, serve de contraste para a violência que a música muitas vezes carrega. É uma forma de articular o histórico com o individual, marca da dramaturgia musical que o maestro Otávio Simões, à frente da Amazonas Filarmônica, soube recriar de maneira sensível e intensa, particularmente atento aos jogos temáticos que o compositor propõe.

O jornalista João Luiz Sampaio viajou a Manaus a convite do Festival Amazonas de Ópera

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