Música para nossos dias

por Nelson Rubens Kunze 23/09/2024

Obra da compositora Anna Clyne é ponto alto em ótimo concerto da Osesp

Foi um programa especial que a Osesp apresentou na semana passada (19, 20 e 21 de setembro) na Sala São Paulo, com obras de Anna Clyne, Peter Eötvös e Dmitri Shostakovich, grandes mestres da música do século XX e da música de nossos dias. Assisti ao concerto de sexta-feira, dia 20, e foi muito bom! 

Começo com o maestro e compositor húngaro Peter Eötvös, uma das grandes personalidades da música contemporânea. Nascido em 1944, Eötvös teve sua formação moldada por compositores como Ligeti, Kurtag, Zimmermann e Stockhausen, tendo sido também diretor e maestro do Ensemble Intercontemporain, fundado por Boulez e um dos principais grupos para a difusão da música de nossos dias. Eötvös faleceu em março passado, aos 80 anos.

De Eötvös, a Osesp interpretou Speaking Drums (percussão falante), um concerto para percussão e orquestra. O solista foi o Domniq, como é conhecido o holandês Dominique Vleeshouwers, artista que vem trilhando interessante carreira com diversos projetos autorais. Em Speaking Drums, o solista não só toca vários instrumentos – de tímpanos a um tipo de “cuíca sinfônica” –, como também emite sons vocais que são “imitados” pela percussão (o caderno do programa escreve que “o solista ensina seu instrumento a falar até que a percussão passe a falar por si mesmo”). A obra também explora um lado performático do solista, que assim também é um ator, estabelecendo novas vias de comunicação com o público. Como próprio dessa geração de criadores, Speaking Drums tem um componente experimental, de exploração de novos sons e recursos instrumentais.

E foi excelente a interpretação do solista e da orquestra, sob regência segura e convicta da maestra chinesa (nascida em Hong Kong) Elim Chan. Muito aplaudido, Domniq deu um bis na marimba de uma peça que tinha acabado de compor aqui em São Paulo.

Após o intervalo, a Osesp interpretou a Sinfonia nֻº 10, de Shostakovich. Esta é a primeira sinfonia que Shostakovich escreveu após ter sido denunciado e censurado pelo governo soviético pela segunda vez, em 1948 – e, sintomaticamente, é também a primeira que escreveu após a morte de Stalin, em 1953. No livro Testemunho, publicado em inglês em 1979 e que supostamente teria sido escrito por Shostakovich, mas cuja autoria é questionada, o compositor afirma que a sinfonia retrata Stalin. A obra faz uso reiterado da assinatura musical de Shostakovich com as notas DSCH (ré, mi bemol, dó e si na notação germânica), o que reforça a ideia dela ser um registro muito pessoal de seus tormentos, de suas incertezas e também de suas esperanças. 

Seja como for, também aqui a Osesp e a maestra Elim Chan estiveram concentrados e ofereceram uma ótima performance, com toda a energia, angústia e carga de tensões e distensões que a partitura exige.

Mas deixei para o fim o melhor da noite, que foi a espetacular obra da compositora britânica Anna Clyne, que abriu o concerto. João Luiz Sampaio já tinha nos apresentado um breve perfil dessa artista singular na coluna Compositoras em foco do Site CONCERTO (leia aqui). Clyne, que nasceu em 1980, se formou na Universidade de Edimburgo e, em seguida, mudou-se para os Estados Unidos, onde estudou na Manhattan School of Music e onde reside até hoje. 

Em pouco mais de 10 minutos, a obra Esta meia-noite (This Midnight Hour) nos transporta por uma montanha russa de sensações e emoções. O mais impressionante é a unidade formal e musical que a autora logrou na peça, construindo um arco sonoro de grande organicidade e completude. E aqui também, a Osesp e a maestra Elim Chan deram o melhor de si, em uma vibrante e empolgante interpretação. 

A obra começa com um andamento acelerado e de grande urgência nas cordas graves, em um motivo recorrente e angustiante, que vez ou outro é reforçado por frases cortantes nos metais e nas madeiras. Clyne extrapola dinâmicas, usa harmônicos e força alturas de afinação, sempre com acompanhamento percussivo. E aí, súbito silêncio, até que o andamento reinicia. Em outro momento emerge um tema tonal, romântico, de coloração folclórica, que nos enche de empatia e humanidade... A escrita é altamente criativa e virtuosística, de grande impacto artístico. 

Mais para o fim, dois trompetistas se deslocam, cada um para um lado do palco, e, em diálogo, acompanham a orquestra, que entoa um tema que parece fantasioso de tão ingênuo. O clima é meio esquisito, mas sugere harmonia e paz. Após uma surpreendente cadência harmônica final, uma martelada do tímpano encerra a obra.

Conforme a nota no programa, Esta meia-noite foi composta baseada em dois breves poemas, um de Charles Baudelaire e outro de Juan Ramón Jiménez. Muitos compositores, desde sempre, se usam desse artifício para comporem suas obras. Aqui, não faz diferença: a música em sua expressão sonora funciona por si. The Midnight Hour nos atinge no âmago de nossas emoções. É um registro pungente de nosso tempo, uma grande obra de arte. 

Sempre defendi que Bach, Beethoven ou Brahms, para ficar nos três “Bs”, seguem atualíssimos nos dias de hoje, pois exprimem ânimos humanos universais e atemporais – amor, ódio, paz, guerra, insensatez, harmonia, paixão, terror e por aí vai. 

Mas quando uma música de hoje, como Esta meia-noite, nos traz essas emoções, ela reforça ainda mais a conexão que essa arte estabelece com a contemporaneidade. Arte como uma antena que capta os sinais de nossa existência, que nos une enquanto humanidade. Música para nossos dias.

[O concerto foi transmitido ao vivo no canal do YouTube da Osesp, clique aqui para acessar.]

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Crítica Música para nossos dias, por Nelson Rubens Kunze

Elim Chan, Domniq e Osesp são aplaudidos na Sala São Paulo (Revista CONCERTO)
Domniq, Elim Chan e Osesp são aplaudidos na Sala São Paulo (Revista CONCERTO)

 

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