Uma tempestade violenta, vultos em alto mar, o desespero perante a força da natureza, o ritmo áspero dos gritos da tripulação “ecoando pelas paredes de granito” de um fiorde norueguês, o “augúrio consolador” da terra firme dando forma poética e musical a uma nova forma de se fazer ópera. O relato da viagem de navio entre Riga e Londres (com Paris como destino final) oferecido por Richard Wagner como inspiração para O Navio Fantasma é tão conhecido quanto é certo que não se deve dar a ele muito crédito. Mas a viagem de 1839 foi mesmo definidora na concepção daquela que é tida como ponto de virada na trajetória artística de Wagner. Por outros motivos.
O compositor deixou Riga por conta de dívidas que não tinha como pagar – e o fez fugido, uma vez que seus documentos haviam sido apreendidos. Wagner gastou como rei em uma vida musical que não via nele majestade, o que já havia acontecido também em outras cidades pelas quais passara. E o desfecho da viagem a Paris não seria dos melhores. O compositor chegou à capital francesa com a expectativa de se consagrar como autor. Mas sobreviveu apenas graças ao trabalho como arranjador e aos textos na imprensa, na qual a verve de costume foi substituída pela preocupação em agradar as pessoas certas – sem resultados para além de promessas vagas de ter suas obras apresentadas.
O contexto biográfico reforçou em Wagner a ideia do artista como um injustiçado, alguém que, apesar de carregar mensagens importantes para a sociedade – e talvez por isso mesmo –, é mantido à margem dela, por ousar, nas palavras do poeta Novalis, “revelar ao mundo o que está além dele”. O Navio Fantasma não deixa dúvidas sobre a força com a qual Wagner se apegou a esse papel. Um marinheiro que, acusado de heresia, é condenado a vagar em eterno sofrimento pelos mares em uma embarcação que apenas de sete em sete anos pode voltar à terra, onde só o amor desinteressado de uma mulher pode salvá-lo de sua maldição: o enredo da ópera resume a ideia do artista como herói que se volta contra o reacionarismo de seu tempo, assim como a noção de redenção por meio do amor, decisivos na obra do compositor.
À luz dessas percepções, no Navio em cartaz no Theatro Municipal de São Paulo há um momento particularmente emblemático. Um foco de luz ilumina o Holandês no momento em que ele tem, em terra, sua primeira conversa com o capitão do mar Daland. Mas o faz de maneira que nada além de sua silhueta seja revelada. O resultado é uma figura que se impõe, mas não se revela.
Está colocada, assim, a noção do mistério em torno do herói – e, ao mesmo tempo, a identidade visual dada a ela pelo diretor Pablo Maritano. Em entrevistas, ele falou de sua inspiração no universo dos quadrinhos. Isso dá a à produção diferentes camadas, um passeio pelo tempo, em uma linhagem que começa no gótico, passa pelo romântico, bebe no expressionismo e dialoga com o cinema noir antes de chegar a um espaço particular do gênero, o do herói que carrega um sentido de isolamento perante a sociedade, com a qual se sente obrigado – como se fosse essa a grande maldição – a interagir.
Todas essas referências aparecem de alguma forma no primeiro ato da ópera, em que projeções (Matías Otálora) e luz (assinada por Aline Santini) criam formas, ampliam e limitam a cena, criando efeitos plasticamente muito bonitos que se unem a ideias interessantes, como a da câmara ascética em que o Holandês aparece aprisionado logo no início da ópera – seus tormentos, o quadro parece sugerir, são menos externos e mais interiores, frutos de um mente que, naquilo que vê para além do mundo real, permanece em constante e dilacerante conflito.
Maritano também utiliza um recurso presente em outros de seus trabalhos, como a montagem de O Cônsul, de Menotti, em Guarulhos, encenada durante a pandemia: a captação ao vivo de imagens em close dos cantores, projetadas em cena. Aqui, porém, a proposta revelou-se problemática. Primeiro, pelo delay incômodo entre voz e imagem e, depois (e também por isso), pelo que significa para a caracterização das personagens: o estilizado faz parte da linguagem dos quadrinhos, mas na ópera ele se aproximou demais do caricato e do superficial.
Não se trata de recorrer à fórmula gasta segundo a qual menos é mais – a diversidade dos figurinos de Desiree Bastos (que também assina a cenografia) são prova disso. Mas é nos atos seguintes, quando, em vez de acrescentar novas camadas, o diretor permite que haja um decantamento de suas ideias, que a cena se torna ainda mais efetiva e o impacto que provoca resulta mais orgânico e intenso. A Balada de Senta (com a bonita homenagem a Regina Elena Mesquista), o diálogo entre os marinheiros em terra e a tripulação do navio fantasma, os duetos entre Senta e o Holandês e Senta e Erik: no uso da luz e no cuidado com a movimentação cênica, esses são momentos de puro artesanato teatral.
Fluência musical
O Navio do Theatro Municipal é um espetáculo fluente, atento ao tempo dramático, o que se torna particularmente importante com a decisão de realizá-lo, como propôs Wagner, sem intervalo. Nesse sentido, não é pequena a contribuição dada pela realização musical. Pelo contrário: o maestro Roberto Minczuk, a Orquestra Sinfônica Municipal e o Coro Lírico realizaram na récita do último domingo um de seus melhores trabalhos desde o início dessa colaboração. O equilíbrio entre os naipes, a intensidade dos metais, o brilho e a densidade nas cordas e nas madeiras: tudo colaborou na caracterização dos personagens, dando aos cantores espaço para que desenvolvessem seus papéis.
O Marinheiro de Giovanni Tristacci é mais um testemunho, e eles não têm sido poucos, de um cantor sofisticado nas escolhas de fraseado e no uso do legato. O baixo Luiz-Ottavio Faria, que interpretou Daland, é uma voz superlativa, de recursos surpreendentes. O Holandês de Hernán Iturralde e a Senta de Carla Filipcic são forjados no cuidado com a palavra e em uma exploração dos coloridos que está sempre sugerindo novas dimensões aos personagens, com um sentido de urgência que beira o abismo e extrai dessa situação limite sua força. O timbre quente, abaritonado de Kristian Benedikt deram a seu Erik importante protagonismo. O Navio Fantasma tem récitas ainda nos dias 24, com o elenco formado por Rodrigo Esteves, Eiko Senda e Ewandro Stenzowski, e 25, com Iturralde, Filpcic e Benedikt.
Veja mais detalhes no Roteiro do Site CONCERTO
Leia também
Notícias Coral Paulistano promove mesas de debates e realiza leituras públicas de obras
Notícias Flo Menezes apresenta ‘Silênsons’, programa em torno de Stockhausen
Notícias Ciclovia Musical celebra dez anos com primeira edição em Porto Alegre
Notícias Ensemble Bach Brasil faz concerto com o 'Magnificat', de Bach
É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.
Comentários
Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.