‘Navio Fantasma’ faz passeio pelo tempo em produção inspirada no mundo dos quadrinhos

por João Luiz Sampaio 23/11/2023

Uma tempestade violenta, vultos em alto mar, o desespero perante a força da natureza, o ritmo áspero dos gritos da tripulação “ecoando pelas paredes de granito” de um fiorde norueguês, o “augúrio consolador” da terra firme dando forma poética e musical a uma nova forma de se fazer ópera. O relato da viagem de navio entre Riga e Londres (com Paris como destino final) oferecido por Richard Wagner como inspiração para O Navio Fantasma é tão conhecido quanto é certo que não se deve dar a ele muito crédito. Mas a viagem de 1839 foi mesmo definidora na concepção daquela que é tida como ponto de virada na trajetória artística de Wagner. Por outros motivos.

O compositor deixou Riga por conta de dívidas que não tinha como pagar – e o fez fugido, uma vez que seus documentos haviam sido apreendidos. Wagner gastou como rei em uma vida musical que não via nele majestade, o que já havia acontecido também em outras cidades pelas quais passara. E o desfecho da viagem a Paris não seria dos melhores. O compositor chegou à capital francesa com a expectativa de se consagrar como autor. Mas sobreviveu apenas graças ao trabalho como arranjador e aos textos na imprensa, na qual a verve de costume foi substituída pela preocupação em agradar as pessoas certas – sem resultados para além de promessas vagas de ter suas obras apresentadas.

O contexto biográfico reforçou em Wagner a ideia do artista como um injustiçado, alguém que, apesar de carregar mensagens importantes para a sociedade – e talvez por isso mesmo –, é mantido à margem dela, por ousar, nas palavras do poeta Novalis, “revelar ao mundo o que está além dele”. O Navio Fantasma não deixa dúvidas sobre a força com a qual Wagner se apegou a esse papel. Um marinheiro que, acusado de heresia, é condenado a vagar em eterno sofrimento pelos mares em uma embarcação que apenas de sete em sete anos pode voltar à terra, onde só o amor desinteressado de uma mulher pode salvá-lo de sua maldição: o enredo da ópera resume a ideia do artista como herói que se volta contra o reacionarismo de seu tempo, assim como a noção de redenção por meio do amor, decisivos na obra do compositor.

À luz dessas percepções, no Navio em cartaz no Theatro Municipal de São Paulo há um momento particularmente emblemático. Um foco de luz ilumina o Holandês no momento em que ele tem, em terra, sua primeira conversa com o capitão do mar Daland. Mas o faz de maneira que nada além de sua silhueta seja revelada. O resultado é uma figura que se impõe, mas não se revela.

Está colocada, assim, a noção do mistério em torno do herói – e, ao mesmo tempo, a identidade visual dada a ela pelo diretor Pablo Maritano. Em entrevistas, ele falou de sua inspiração no universo dos quadrinhos. Isso dá a à produção diferentes camadas, um passeio pelo tempo, em uma linhagem que começa no gótico, passa pelo romântico, bebe no expressionismo e dialoga com o cinema noir antes de chegar a um espaço particular do gênero, o do herói que carrega um sentido de isolamento perante a sociedade, com a qual se sente obrigado – como se fosse essa a grande maldição – a interagir.

Todas essas referências aparecem de alguma forma no primeiro ato da ópera, em que projeções (Matías Otálora) e luz (assinada por Aline Santini) criam formas, ampliam e limitam a cena, criando efeitos plasticamente muito bonitos que se unem a ideias interessantes, como a da câmara ascética em que o Holandês aparece aprisionado logo no início da ópera – seus tormentos, o quadro parece sugerir, são menos externos e mais interiores, frutos de um mente que, naquilo que vê para além do mundo real, permanece em constante e dilacerante conflito.

Maritano também utiliza um recurso presente em outros de seus trabalhos, como a montagem de O Cônsul, de Menotti, em Guarulhos, encenada durante a pandemia: a captação ao vivo de imagens em close dos cantores, projetadas em cena. Aqui, porém, a proposta revelou-se problemática. Primeiro, pelo delay incômodo entre voz e imagem e, depois (e também por isso), pelo que significa para a caracterização das personagens: o estilizado faz parte da linguagem dos quadrinhos, mas na ópera ele se aproximou demais do caricato e do superficial.

Não se trata de recorrer à fórmula gasta segundo a qual menos é mais – a diversidade dos figurinos de Desiree Bastos (que também assina a cenografia) são prova disso. Mas é nos atos seguintes, quando, em vez de acrescentar novas camadas, o diretor permite que haja um decantamento de suas ideias, que a cena se torna ainda mais efetiva e o impacto que provoca resulta mais orgânico e intenso. A Balada de Senta (com a bonita homenagem a Regina Elena Mesquista), o diálogo entre os marinheiros em terra e a tripulação do navio fantasma, os duetos entre Senta e o Holandês e Senta e Erik: no uso da luz e no cuidado com a movimentação cênica, esses são momentos de puro artesanato teatral.

Cena de 'O navio fantasma', em cartaz no Theatro Municipal de São Paulo [Divulgação/Stig de Lavor]
Cena de 'O navio fantasma', em cartaz no Theatro Municipal de São Paulo [Divulgação/Stig de Lavor]

Fluência musical

O Navio do Theatro Municipal é um espetáculo fluente, atento ao tempo dramático, o que se torna particularmente importante com a decisão de realizá-lo, como propôs Wagner, sem intervalo. Nesse sentido, não é pequena a contribuição dada pela realização musical. Pelo contrário: o maestro Roberto Minczuk, a Orquestra Sinfônica Municipal e o Coro Lírico realizaram na récita do último domingo um de seus melhores trabalhos desde o início dessa colaboração. O equilíbrio entre os naipes, a intensidade dos metais, o brilho e a densidade nas cordas e nas madeiras: tudo colaborou na caracterização dos personagens, dando aos cantores espaço para que desenvolvessem seus papéis.

O Marinheiro de Giovanni Tristacci é mais um testemunho, e eles não têm sido poucos, de um cantor sofisticado nas escolhas de fraseado e no uso do legato. O baixo Luiz-Ottavio Faria, que interpretou Daland, é uma voz superlativa, de recursos surpreendentes. O Holandês de Hernán Iturralde e a Senta de Carla Filipcic são forjados no cuidado com a palavra e em uma exploração dos coloridos que está sempre sugerindo novas dimensões aos personagens, com um sentido de urgência que beira o abismo e extrai dessa situação limite sua força. O timbre quente, abaritonado de Kristian Benedikt deram a seu Erik importante protagonismo. O Navio Fantasma tem récitas ainda nos dias 24, com o elenco formado por Rodrigo Esteves, Eiko Senda e Ewandro Stenzowski, e 25, com Iturralde, Filpcic e Benedikt.

Veja mais detalhes no Roteiro do Site CONCERTO

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