No Theatro São Pedro, leituras nada rotineiras para obras marcantes

É com certa dor no coração que assistimos, no Theatro São Pedro, ao fim da trilogia que a casa consagrou a uma das mais estimulantes duplas de criadores do século XX: o compositor Kurt Weill (1900-1950) e o dramaturgo Bertolt Brecht (1898-1956). Pois já estava se tornando uma agradável rotina ver essa parte tão estimulante do repertório do teatro musical ser lida por uma dupla tão fora da rotina quanto o regente Ira Levin e o diretor Alexandre dal Farra. O trítico começou com dois itens relativamente conhecidos: Os sete pecados capitais (2021) e A ópera dos três vinténs (2022). Para fechar o ciclo, ficou o programa mais raro: uma dobradinha de Aquele que diz sim e O voo através do oceano.

Trata-se de duas criações praticamente da mesma época, em que Brecht escreveu o texto a quatro mãos com Elisabeth Hauptmann (1897-1973). Aquele que diz sim estreou em 1930, transmitida pelo rádio, sendo logo em seguida produzida no Instituto Central de Educação e Instrução, em Berlim. Já O voo através do oceano nasceu em 1929, como partitura conjunta de Weill e Paul Hindemith (versão hoje indisponível para performance), com o título de O voo de Lindbergh, na Krolloper, de Berlim, sob a batuta de ninguém menos que Otto Klemperer. Em seguida, Weill musicou também a parte que tinha ficado a cargo de Hindemith, e isso é o que ouvimos no São Pedro. 

Ambas são exemplares daquilo que ficou conhecido como Lehrstück, ou pela didática. Nunca é demais lembrar que o teatro brechtiano é dramaturgia de Verfremdungseffekt – o efeito de distanciamento, ou estranhamento. Em Brecht, o teatro não deve ser mimese, imitação da realidade: o espectador deve estar consciente de que está diante de uma obra de arte, de um artefato estético, de uma ilusão. Portanto, a peça didática não é uma apresentação de ações edificantes, mas uma oportunidade de fazer o público refletir sobre os erros dos personagens e aprender com eles. Diferentemente do espectador passivo do teatro convencional, que sorve comodamente aquilo que lhe é oferecido, Brecht espera de sua plateia uma atitude crítica: é ela, em última análise, que decide se o que aconteceu no palco é positivo ou negativo.

No caso específico das histórias contadas no São Pedro, trata-se de duas viagens. A primeira, adaptada da versão inglesa de Arthur Waley da peça japonesa Taniko, fala de um menino que parte com um professor e seus discípulos em uma jornada em busca de remédios para a mãe – e, não suportando as agruras da árdua caminhada, tragicamente resigna-se à tradição e consente em ser atirado em um vale, para não retardar a marcha.

Já na segunda, que narra o voo transatlântico sem escalas de Charles Lindbergh no avião The Spirit of St. Louis, em 1927, a tragédia acontece depois da conclusão da obra – o aviador norte-americano aproximou-se do nazismo na década de 1930, o que fez Brecht alterar o título da peça e dela remover qualquer menção ao nome de Lindbergh.

Dal Farra aboliu a diferenciação entre palco e plateia, fazendo coro e solistas atuarem incessantemente no meio do público. Sua cenografia minimalista permitiu a projeção de vídeos sem que esse recurso resultasse em saturação ou poluição visual. O resultado foi um espetáculo enxuto e de ritmo ágil, ditado pela música.

E esta não poderia encontrar servidor melhor do que Ira Levin. Weill produziu duas partituras descomplicadas e, ao mesmo tempo, inventivas, com um efetivo instrumental reduzido e rico em combinações inusitadas. Navegando com profundo conhecimento pelo universo do compositor, Levin comandou com fluidez e transparência mozartiana uma Orquestra do Theatro São Pedro que parecia completamente à vontade.

Aquele que diz sim, a primeira das óperas, funcionou como um relógio, sobretudo pelo bem ajustado elenco. Difícil imaginar um Menino mais convincente, vocal e cenicamente, do que a soprano Manuela Freua – em perfeita química com a Mãe da experimentada mezzo Luciana Bueno. Para mim, que nunca o havia escutado, foi uma grata surpresa a solidez do barítono Vitor Bispo, no papel do professor.

Bispo, felizmente, continuou em cena para O voo através do oceano – executada sem intervalo. A seu lado, o baixo Anderson Barbosa teve uma performance igualmente convincente. Apesar da firmeza destes dois alicerces, a performance oscilou devido ao protagonista. A bem da verdade, o tenor Flávio Leite articulou com muita clareza tanto o texto alemão cantado, quanto a breve parte que é declamada em português. Porém, na récita a que assisti, no sábado, dia 13, a linha vocal estava precária e instável – o que não chegou a comprometer o espetáculo como um todo, mas reduziu a empolgação produzida pela primeira metade.

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Cena de 'Aquele que diz sim', apresentado no Theatro São Pedro [Divulgação/Heloisa Bortz]
Cena de 'Aquele que diz sim', ópera apresentada no Theatro São Pedro [Divulgação/Heloisa Bortz]

 

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