Sob regência de Carlos Prazeres e participação da violinista Priscila Plata Ratto, apresentação teve obras de Francisco Braga, Dvořák, Schubert e Vaughan Williams
A Orquestra Sinfônica de Campinas abriu o segundo semestre de sua temporada com um programa original, composto por três obras menos conhecidas e uma situada entre as mais populares do repertório.
Esse programa levou o título de “Concerto da paz”. Eram partituras que se caracterizavam pela interioridade meditativa. Calmas, elas não tinham de modo algum as dificuldades terríveis da Sagração da primavera ou do Concerto para orquestra, de Bartók. Isso quer dizer que a Sinfônica de Campinas estava em zona de conforto e, regida por seu maestro titular Carlos Prazeres, deu de si belas qualidades de nuanças e delicadezas. O maestro dedicou a apresentação à memória de Antonio Meneses.
A primeira peça foi Episódio sinfônico, de Francisco Braga. Braga é um dos compositores mais injustiçados que o Brasil já produziu. Suas obras são admiráveis de colorido, finura, inspiração, construção narrativa e perfeita orquestração. Mas o que conhecemos dele? Foi o compositor do Hino à bandeira. John Neschling apaixonou-se, com toda razão, por sua ópera Jupyra, que apresentou no Theatro Municipal de São Paulo e que gravou em disco com a Osesp, Rosana Lamosa e Eliane Coelho. O mesmo CD comporta também seu esplêndido poema sinfônico Cauchemar. É pouco mais ou menos isso, afora algumas peças para piano, canto ou conjunto de câmara que se ouvem raramente.
O Episódio sinfônico havia sido gravado em tempos remotos pela própria Sinfônica de Campinas, então regida por Benito Juarez, registro hoje bastante raro. Alguns maestros a incorporam em seu repertório: é breve (6 minutos), linda, muito prática para os hors-d’oeuvre dos concertos, antes da chegada dos pratos principais. Sobretudo quando se quer satisfazer uma quota de música brasileira.
Neste concerto “da paz”, tomou sentido maior, integrando-se na coerência da escolha e compartilhando a mesma qualidade dos outros grandes autores da música internacional. Braga compôs Episódio sinfônico em Dresden, na Alemanha, em 1898, e sua inspiração teria sido religiosa. Mas ele transcende a religiosidade para uma espiritualidade mais elevada, comovida e universal: teve razão em lhe dar esse título neutro, genérico, abstrato. O esplêndido tema oferecido pelos violoncelos é inesquecível, sua fusão com o resto da orquestra no momento de plexo maior parece fazer dilatar a alma.
Em seguida, foi a Romance (palavra francesa que é feminina e não quer dizer romance, mas sim romança, no sentido de canção sentimental, amorosa) em fá menor op. 11, de Dvořák, para violino e orquestra, que o compositor escreveu a partir do movimento lento de um de seus quartetos de cordas, o de nº 5, e que foi estreada em 1877. Embora tenha um número relevante de gravações, não é lá muito programada nos concertos.
A jovem e excelente Priscila Plata Ratto foi a solista. A qualidade serena da obra não exclui a exigência técnica muito alta, que foi vencida com grande beleza de som e naturalidade. A linha melódica do violino integrava-se perfeitamente à sonoridade da orquestra, sem excessivo destaque, o que teria sido um contrassenso: trata-se de um maravilhoso canto que se enleia nas sonoridades orquestrais.
A terceira obra foi a celebérrima Sinfonia Inacabada, de Schubert, composta em 1822. Prazeres não insistiu nem no mistério, nem no drama, que podem ser duas maneiras de abordar a partitura, mas equilibrou essas qualidades numa visão mais meditativa, avançando com calma, com suavidade, controlando perfeitamente os contrastes, sem nenhum sentimentalismo superficial nem efeitos amaneirados, numa espécie de contenção “clássica”, por assim dizer. O que não impediu a Inacabada de comover até os ossos do público.
Enfim, o concerto se completou com a maravilhosa The Lark Ascending, A ascensão da cotovia, de Ralph Vaughan Williams. Ela tem como subtítulo A Romance, Uma romança, a segunda, portanto, da noite. Foi escrita num período que vai de 1914 ao início dos anos de 1920. Tem grande popularidade na Inglaterra, e resultou numa excelente escolha conclusiva para a noite.
É uma peça breve, ela também para violino solo, e Priscila Plata Ratto voltou para uma interpretação memorável. O poema que inspirou a composição fala de uma cotovia e de seu canto, que se perdem na luz, e a música tem o efeito de leveza ascensional exigindo sonoridade nada fácil de obter: é importante evitar o fraseado mais robusto já que essa cotovia tem como primeira qualidade sua fragilidade aérea. A interpretação criou, no Teatro Castro Mendes, uma atmosfera de calma e de elevação que congregou o público num admirável sentido de beleza.
A natureza das obras desse “Concerto da paz”, calmas e suaves, provocou com clareza um curioso e frequente fenômeno psicofisiológico. O público de concerto fica quieto em obras agitadas e fortes. Nunca tosse na abertura de O barbeiro de Sevilha, de Rossini, por exemplo, na Marcha eslava, de Tchaikovsky, ou em quaisquer passagens sinfônicas vibrantes. Mas mal um pianíssimo se prolonga num largo, e pronto, parece que uma epidemia de gripe se abate sobre vários ouvintes. Ou talvez nem tantos assim, é que basta um para perturbar muito.
Ora, nas obras interpretadas pela Sinfônica de Campinas, a suavização do som, seu esmaecer num fundo de silêncio, eram muito frequentes. E pronto: tosses escancaradas, sem a precaução do lenço que abafa, conversas, coisas que caem, mudanças ruidosas de assentos, todo um inferno cacofônico de fazer John Cage vibrar de gozo.
Talvez os maestros pudessem agradecer aos ouvintes que fazem silêncio e que procuram se concentrar naquilo que estão ouvindo. Para os outros, que sejam convidados para uma interpretação de 4’33”.
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