Ira Levin e Rodrigo Esteves garimpam revelações preciosas na dobradinha Busoni/Puccini

por Márvio dos Anjos 05/08/2024

A estreia da Turandot, de Ferruccio Busoni, pareada com a sempre bem-vinda Gianni Schicchi, de Puccini, para fechar a noite, serviu para nos recordar como o Theatro São Pedro conquistou um papel tão importante na cidade de São Paulo. Mais uma vez, a parceria de Alexandre Dal Farra (encenador) e Ira Levin (direção musical) se mostrou capaz de colocar um excelente espetáculo de pé. Musicalmente muito sofisticada, e especialmente divertida no que diz respeito a Gianni Schicchi, a dobradinha que comemorava os 100 anos de morte dos dois compositores mostrou-se um risco muito bem administrado.

Era arriscado porque é difícil desembainhar a Turandot de Busoni, tão à sombra da obra inacabada de Puccini. Inspirada na comédia de cinco atos de Carlo Gozzi de 1762, esta Turandot tem muito mais a ver com o espírito da commedia dell'arte que permeia a peça original, em que a China é apenas um lugar de fábula e misticismo.

Dal Farra optou por dialogar com Gianni Schicchi desde o início, colocando o moribundo Buoso Donati (o ator Ney Piacetini) para perambular pelo cenário, entre os personagens da princesa Turandot (Marly Montoni, soprano) e Kalaf (Giovanni Tristacci, tenor). Cenicamente, o diretor repetiu recursos já vistos na trilogia de Brecht e Weill, como a inserção de câmeras que ampliam os espaços, e evitou inclinações para o kitsch e para a polêmica. Sua rainha-mãe de Samarcanda (Raquel Paulin), por exemplo, entrou vestida de Elizabeth II acompanhada do ótimo coro feminino, em vez de recorrer à chinoiserie fácil.

Nesta obra, a noite foi mesmo de Ira Levin. Radicado no Brasil e cada vez mais íntimo da Orquestra do São Pedro, Levin (que sugeriu à direção artística o twist da Turandot não pucciniana ao lado de Schicchi) conseguiu extrair um Busoni de excelência, em que a música complexa, de inspiração alemã, não perdia os acentos italianos que volta e meia se sentem na difícil partitura. Se não ficou exatamente orgânica nas gargantes de Montoni e Tristacci, no sentido de uma desejável espontaneidade no canto, é inegável que a obra foi belamente executada. Daniel Umbelino (tenor), como Truffaldino, também foi um grande destaque.

Mas foi em Gianni Schicchi que a noite obteve sua consagração. Como se trata de uma comédia até certo ponto escrachada, a história do malandro convocado para falsificar um testamento a fim de beneficiar os parentes de um ricaço normalmente termina com sorrisos no rosto e isso cumpre um papel. Raro, porém, é obter o nível de refinamento que o conjunto de vozes solistas guiado por Ira Levin obteve na sexta-feira, dia 2.

Envolvidos pela proposta de uma casa que vai se encolhendo – uma ótima ideia teatral de Dal Farra, bem executada na cenografia de Duda Arruk –, os inúmeros personagens vão se empilhando sobre a cama de Buoso Donati até que são lembrados por Schicchi de que podem perder a mão pelo crime que cometerão juntos. Esse pequeno conjunto foi cantado como um delicadíssimo madrigal, remetendo-nos ao coro à bocca chiusa da Madame Butterfly e lembrando-nos que Puccini continua a ser Puccini mesmo quando quer fazer rir. Mais uma vez, o mérito de Levin foi decisivo para revelar novidades mesmo numa partitura que já conhecemos.

No elenco, o barítono Rodrigo Esteves promoveu uma verdadeira masterclass, numa caracterização que, como diz o próprio libreto de Giovacchino Forzano, "conhece e sabe cada malícia das leis e dos códigos". Sua voz quente, curvilínea e caudalosa encheu os ouvidos em praticamente cada frase; quando Schicchi anasala a voz para imitar a agonia de Buoso Donati, Esteves foi simplesmente hilário. Mas é verdade, também, que Esteves tinha ao seu lado um elenco de muita qualidade, com apenas um senão, que explicarei mais à frente.

As vozes graves eram especialmente notáveis. A contralto Nathália Serrano fez uma Zitta muito bem escalada, com uma voz de beleza brônzea e teatralidade viva, enquanto os baixos Saulo Javan (Simone) e Gustavo Lassen (Betto) deram brilho e graça a papéis que podem facilmente se perder na confusão. A Lauretta "periguete" de Raquel Paulin cantou com muita expressão e afinação o hit O mio babbino caro; Juliana Taino (mezzo, Ciesca) e Marly Montoni (Nella) mostraram correção em seus pequenos personagens, muito bem vestidos por Fabio Namatame.

O senão fica por conta da escalação do tenor ligeiro Daniel Umbelino como Rinuccio, num palco em que Giovanni Tristacci (que foi Rinuccio em Guarulhos e Jundiaí em 2023) está presente. Umbelino é um dos nossos melhores tenores ligeiros, mas sua voz leve sofre na orquestração pucciniana de uma maneira que não ocorreria com Tristacci. Como é refinado, sua ária Firenze è Come un Albero Fiorito saiu com dignidade, mas ainda assim encoberta. Salva-se, de fato, sua imensa química com Raquel Paulin. Casal na vida real, os dois cantores deixaram o coração toda vez que o tema do "casamento em maio" voltava. Uma grande noite na simpática ópera da Barra Funda, que coroa o espírito desbravador de Ira Levin e presenteia os corações com revelações preciosas.

Ouvinte Crítico

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Daniel Umbelino, Raquel Paulin e Rodrigo Esteves em cena de 'Gianni Schicchi' [Divulgação/Íris Zanetti]
Daniel Umbelino, Raquel Paulin e Rodrigo Esteves em cena de 'Gianni Schicchi' [Divulgação/Íris Zanetti]

 

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Concordo com a crítica do Márvio. Estive na última récita e saí muito satisfeito do São Pedro. Apresentações de grande qualidade artística.

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