O saboroso peru de Natal de Leonardo Martinelli

Duas récitas com ingressos esgotados, e o público, entusiasmado, aplaundindo de pé uma ópera contemporânea – e atonal. Último título de um ano rico em ousadias, O peru de Natal, de Leonardo Martinelli, chegou para reafirmar o que deveria ser uma obviedade: teatro de ópera existe para fazer... ópera! E ópera, hoje, não precisa fingir que foi escrita há 200 anos para atrair e agradar o público. Pode e deve ser composta utilizando uma linguagem contemporânea – linguagem esta que a audiência contemporânea está apta a devidamente decodificar.

Não custa lembrar que o Peru foi a segunda estreia promovida pelo Theatro São Pedro em 2019 – em setembro, a casa já abrigara Ritos de Perpassagem, de Flo Menezes. E outros teatros brasileiros também andaram apostando em títulos contemporâneos: o Municipal de São Paulo teve Prism, da norte-americana Ellen Reid, enquanto o Municipal do Rio de Janeiro encenou Orphée, do também norte-americano Philip Glass.

Encenada no último final de semana pela Academia de Ópera e Orquestra Jovem do Teatro São Pedro, O Peru de Natal, baseada em conto de Mário de Andrade, tem libreto de Jorge Coli, fechando uma trilogia de óperas do colaborador da Revista CONCERTO com foco no lema da Revolução Francesa. A empreitada teve início em 2013, com O Menino e a Liberdade, inspirada em crônica de Paulo Bomfim (1926-2019), e música de Ronaldo Miranda, e continuou com O Espelho (2017), adaptação de Machado de Assis, musicada por Jorge Antunes, e tematizando a igualdade.

Coube a Martinelli a ópera que abordaria a fraternidade. O peru de Natal retrata a primeira ceia natalina de uma família após a morte do patriarca. Com o desenrolar da trama, percebe-se que sua autoridade era opressiva, e a devoração do peru, em vez de ser uma ocasião de luto, será o ritual gastronômico de festejo da libertação de seus familiares.

A ópera O peru de Natal [Divulgação / Heloisa Bortz]
A ópera O peru de Natal [Divulgação / Heloisa Bortz]

Para contar essa história, Martinelli montou a estrutura sui generis de uma ópera cômica atonal de números. Raul (o protagonista, que, para reforçar a ligação biográfica, Coli batizou com o segundo nome de Mário de Andrade) e sua mãe, Maria Luísa, têm duas árias cada; a tia Tidinha, uma. Uma engenhosa passacalha funciona de abertura, ditando o clima e o andamento do espetáculo; as árias são ligadas por recitativos, e há ainda um interlúdio e uma impagável pantomima (um embate de UFC entre o peru e o pai falecido).

Martinelli soube escrever com maestria para as possibilidades dos jovens instrumentistas e intérpretes sem, com isso, fazer qualquer concessão estética. Os que acompanhamos sua produção já sabemos de seu domínio tanto da linguagem orquestral, quanto da vocal. O maior desafio, para quem nunca abordara o gênero operístico, era o tempo dramático. E aí ele se revelou especialmente feliz. O peru de Natal tem uma linguagem coesa e uniforme e, em sua brevidade (46 minutos), jamais deixa a peteca cair, mantendo o ritmo fluente que é decisivo no teatro musical.

Essa fluência deve-se também ao libreto benfazejamente conciso de Jorge Coli (que teve a sabedoria de não modernizar a linguagem de Mário, mantendo o sabor do vocabulário da década de 1940) e à batuta firme e precisa de Miguel Campos Neto, sempre atento às demandas de cantores e instrumentistas, e que demonstrou todo o carinho e dedicação que uma partitura executada pela primeira vez merece.

Mauro Wrona soube captar as sugestões oferecidas pelo libreto e pela música e, auxiliado por uma sólida equipe feminina, montou um espetáculo divertido, eficaz do ponto de vista dramático e plasticamente sóbrio – sem, contudo, que isso denotasse precariedade. Com preparação musical de Fabio Bezuti, o elenco empenhou-se para dominar a complexa linguagem de Martinelli, e não apenas venceu as dificuldades técnicas, como conseguiu adonar-se de seus papéis a ponto de interpretá-los com convicção.

Estive presente à estreia, no último sábado, dia 14, e a grande revelação foi a soprano Daiane Scales, no papel de Tidinha – uma voz cristalina e volumosa, de agudos aparentemente fáceis, e dramaticamente incandescente. Tati Helene (solista convidada, que não pertence à Academia) emprestou toda sua experiência ao papel de Maria Luísa, colorindo com diversos matizes Não, Tidinha, a primeira (e dificílima) ária de seu personagem. Do ponto de vista de precisão e entrega, o baixo Pedro Côrtes esteve no nível de suas colegas; só ficou um pouco abaixo no quesito de projeção da voz – algo que os anos de estudo devem trazer a este jovem e promissor cantor. Vale ainda destacar as coloraturas ágeis de Tatiane Reis, que entrou no final para “puxar” a apoteose carnavalesca que encerra a ópera.

Sim, teve bateria de escola de samba em uma ópera atonal! Como teve um Debussy tocado ao piano de forma propositadamente hesitante e errônea por Alexsander Ribeiro de Lara (outro vínculo com a biografia de Mário de Andrade, que executava obras do compositor francês privadamente em casa) e um hilário funk, que marca o momento em que Tidinha “solta a franga”. Pensados justamente como momentos de quebra de registro dramático, esses instantes são ainda mais impactantes dentro de um ambiente sonoro que se afasta da tonalidade.

Se fôssemos comparar o tríptico de Coli com o de Puccini, diríamos que, em O peru de Natal, ele tem seu Gianni Schicchi. Pela economia de meios, caráter burlesco e efetividade da ação teatral, talvez seja possível compará-lo ao Pedro Malazarte, de Camargo Guarnieri – não por acaso, com libreto de Mário de Andrade. Não parece exagero dizer que o título consolida Martinelli não apenas como um dos grandes compositores brasileiros de sua geração, mas ainda o inscreve na nobre linhagem de nossos grandes criadores nacionais de ópera. Mal posso esperar por sua versão de Navalha na carne, adaptação operística da peça homônima de Plínio Marcos, que integrará a programação de 2020 do Teatro Municipal de São Paulo. Essa eu não perco de jeito nenhum!

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