Gravação do Selo Sesc foi lançada em ótimo recital no Sesc Pinheiros
Karin Fernandes é uma pianista notável. Com sua premiada e exuberante competência musical – tanto do ponto de vista técnico como de compreensão estilística –, ela tem trilhado uma importante carreira com criteriosos projetos artísticos.
O novo marco do trabalho de Karin é o registro dos 50 Ponteios de Camargo Guarnieri, álbum gravado pelo Selo Sesc e que teve seu lançamento em recital no Sesc Pinheiros na noite de quarta-feira, dia 29 de janeiro. A gravação já está disponível em todas as plataformas digitais (não há previsão de lançamento do CD físico).
Karin coloca a série dos Ponteios lado a lado a obras como os prelúdios de Chopin ou os Vingt Regards de Olivier Messiaen. “Tem tudo ali [...] É um universo absurdamente incrível – e muito difícil”, afirmou em entrevista publicada na edição de janeiro-fevereiro da Revista CONCERTO.
Camargo Guarnieri (1907-1993) compôs os 50 Ponteios em um período de quase 30 anos, dos seus 24 aos 52 anos de idade. São breves peças para piano, pequenas invenções, de em média 2 minutos de duração, cada uma com uma expressão artística bem característica já evidenciada por títulos como raivoso e ritmado, dolente, apaixonado, incisivo, nostálgico, tristemente, confidencial, torturado e outros. Chama a atenção a incrível riqueza e artesanato composicionais e a coerência estética que perpassa o ciclo.
Guarnieri nomeou as peças de ponteios, dos ponteados da viola popular, provavelmente para reforçar a “brasilidade” da composição. É verdade que Guarnieri, na esteira de Villa-Lobos, pertence à escola nacionalista do século XX, foi ele o autor da famosa carta aberta de 1950 em que fez duras críticas ao dodecafonismo e aos movimentos de vanguarda como o Música Viva, liderado por H.-J. Koellreutter (1915-2005).
A brasilidade que os Ponteios expressam, contudo, não tem nada a ver com uma ideia nacionalista tosca, conservadora e retrógrada, que sempre assombra a cultura (e não só a cultura, vide o que acontece exatamente nesse momento mundo afora com Trump ou os movimentos extremistas europeus).
Os Ponteios de Guarnieri, com suas inflexões melódicas e estruturas rítmicas, expressam mesmo uma brasilidade, mas ela é autêntica e criativa, um documento do modernismo musical. Em melodias muitas vezes singelas, contrapontos transparentes ou harmonias arrojadas, há arestas, dissonâncias, ritmos quebrados e linhas cromáticas de grande inventividade, que abrem múltiplas camadas interpretativas.
Diversos pianistas tocaram os Ponteios de Guarnieri, entre eles nomes estelares como Guiomar Novaes. Isabel Mourão gravou a obra em um LP lançado na década de 1960 e Lais de Souza Brasil, em 1979. Mais recentemente, em 2013, Max Barros registrou o ciclo para o selo Naxos.
O projeto e a curadoria desta gravação dos Ponteios do Selo Sesc são da pesquisadora e jornalista Camila Fresca (que também é colunista da Revista CONCERTO). Para Camila, a obra “é quase como se fossem poemas. É uma ideia musical concentrada, muito lírica, alguns muito dramáticos, mas a maioria muito nostálgica. [...] Enxergo esses ponteios como uma produção muito prazerosa e muito pessoal dele.”
E com os Ponteios Karin Fernandes está em casa! Com técnica apurada e personalidade musical, a pianista confere a cada obra uma leitura de grande concentração e brilho.
No ótimo recital de lançamento, que aconteceu no auditório do Sesc Pinheiros, Karin selecionou quatro ponteios de cada um dos cinco cadernos escritos por Guarnieri. Pareceu-me uma seleção muito apropriada, iniciando com o nº 1, Calmo, com profunda saudade (em que a simplicidade da escrita e a interpretação também sugerem uma certa impassividade e resignação) e terminando com o de nº 49, Torturado (uma ritmada e romântica homenagem a Scriabin). Em um ambiente bastante íntimo e informal – o auditório comporta 100 pessoas –, Karin falou brevemente antes de cada grupo de Ponteios, contando das dedicatórias que Guarnieri fez para cada uma das peças.
O Sesc é um dos grandes orgulhos nacionais no que diz respeito à prestação de serviço público para a comunidade, e ele só merece elogios. E muitos! E o que falar do Selo Sesc, que é em nosso país um baluarte para o registro do repertório clássico – não à toa, o CD Integrais do Selo Sesc venceu o Prêmio CONCERTO 2025 da categoria CDs / DVDs / Livros. Ainda assim, quero dizer que um recital como este mereceria um teatro de acústica mais adequada e, talvez, um piano que conseguisse responder com melhor propriedade aos detalhes interpretativos da grande arte de Karin Fernandes.
Sem dúvida, essa nova gravação dos Ponteios é mais um destaque na carreira artística de Karin Fernandes, marcada por ótimos projetos, muitos dos quais ligados à música contemporânea ou à música brasileira.
Aliás, o compromisso com a música brasileira parece ser um projeto de vida de Karin Fernandes. Em junho de 1997 – portanto, dois anos antes de sua premiação no Concurso Eldorado –, a Revista CONCERTO publicou uma carta de leitor da então jovem pianista reclamando da pouca atenção dada ao compositor Oscar Lorenzo Fernandez, que estava completando 100 anos de nascimento: “Até agora, só ouvi falar de Schubert e Brahms. Que pena!” (veja abaixo).
Os Ponteios na interpretação de Karin Fernandes podem ser ouvidos nas principais plataformas de streaming (clique aqui para acessar).
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Comentários
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Muito acertado, no texto, o…
Muito acertado, no texto, o destaque e a valorização quanto à excelência deste trabalho de Karin Fernandes e sua importância no nosso panorama cultural, mas me causa espécie que o articulista não aponte, (e/ou lamente) o ABSURDO de o trabalho não ter merecido do Selo Sesc a óbvia qualificação que só um CD físico traria! lamentável essa ausência!