Um compositor extraordinário

por João Marcos Coelho 04/10/2021

Álbum da Boston Modern Project Orchestra é uma excelente porta de entrada para a música de Elliott Carter

Quando se pronuncia o nome de Elliott Carter, muitos procuram afastar-se, ou até tapar os ouvidos. Normal. Em seu próprio país, os Estados Unidos, ele era considerado ironicamente “um excelente compositor europeu”, da linhagem de Pierre Boulez. Este norte-americano extraordinário viveu muito. Nasceu em 1908 e morreu em 2012. E construiu uma obra difícil, porém admirável.

Ele foi aqui e ali documentando sua trajetória exemplar em artigos, reunidos por Jonathan Bernard e publicados pela editora da Universidade de Rochester em 1997. Foi amigo dileto de Charles Rosen, o pianista-musicólogo excepcional, que morreu apenas 32 dias depois do compositor, em dezembro de 2012, e gravou sua obra para piano.

Retornei ao seu livro de ensaios e textos curtos porque a Boston Modern Project Orchestra acaba de lançar um álbum por todos os motivos surpreendente, com música de Carter. Liderada pelo maestro Gil Rose, interpreta duas músicas para balé compostas por Carter entre 1938, data de Pocahontas, e 1947, data de The Minotaur

Surpreendente porque ambas as obras são de relativamente fácil audição. Em termos de construção e fatura técnica, soam à primeira audição bem mais domesticadas que, por exemplo, a Sagração da Primavera, de Stravinsky, que é de 1913. E, para os que conhecem sua obra dos anos 1950 em diante, a partir da famosa Sonata para piano, que é de 1947, elas soam convencionais demais. O vanguardista nascera bem-comportado, é o primeiro raciocínio.

Só que não. Num delicioso e direto artigo de 1960, Carter começa lembrando os tempos em que estudou entre 1932 e 1935, em Paris, com Nadia Boulanger, que afirma ser “a professora a quem mais devo”. Conta ele: “Nadia costumava dizer a seus alunos que o verdadeiro artista pode e deve ser reconhecido pela qualidade das suas recusas, querendo com isso chamar com severidade a nossa atenção para a atividade crítica que está por trás de toda obra de arte de boa qualidade”.

Inteligente, Carter entende o conselho, mas o considera válido para artistas franceses cultos da virada do século XX, como Cèzanne, Mallarmé e Debussy, que rejeitaram não só ideias comumente aceitas sobre suas pinturas, poesia e música, mas inclusive policiaram-se para não as substituir por outras ideias prontas de sua lavra, deixando-se repeti-las em suas próprias obras.

E, mesmo que não perguntado, responde à hostilidade do público e crítica norte-americanos a suas obras posteriores aos anos 1940 dizendo que na Europa o compositor conta com “ouvintes atentos, com experiência no pensamento musical”. O que, obviamente, não acontecia em seu país, a seu juízo.

 

Direto ao ponto. A certa altura Carter escreve o seguinte sobre Pocahontas, de 1938, sua primeira composição orquestral, resultado de uma encomenda: “A música, agora [1960] tão fácil de ouvir, foi considerada difícil tanto pelos músicos quanto pelo público em sua estreia em Nova York (...) Mas ganhou o prêmio da Juilliard School para publicação em 1941; várias centenas de cópias empoeiraram em bibliotecas e sebos até 1959, quando foi publicamente executada, na Suíça”.

Quanto à outra música para balé, de 1947, The Minotaur, tinha como tema os campos de concentração da Segunda Guerra Mundial, o que até poderia ter justificado aos ouvidos bem-comportados do público uma licença poética devido ao tema cruento.  Só que não, de novo. A primeira gravação só aconteceu agora, em 2021, com a Boston Modern Orchestra Project. Um álbum que vale muito a pena escutar com atenção. E perceber como, mesmo em encomendas, Carter não abria mão de suas convicções, como lhe aconselhara Boulanger. Experimente ouvir o terceiro movimento de Pocahontas, por exemplo, e você vai até gostar de encontrar frases assimétricas, harmonias dissonantes, além de uma constante combinação de elementos diatônicos e cromáticos – características que ele aprofundaria nas décadas seguintes.

Este álbum é, seguramente, uma excelente porta de entrada para a música de Elliott Carter. Porque ali estão, em germe, e em alguns momentos escancaradas, algumas das ideias composicionais que ele jamais abandonou – e radicalizou muito em sua longa vida.

Boston Modern Project Orchestra [Divulgação/ Liz Linder]
Boston Modern Project Orchestra [Divulgação/ Liz Linder]

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