Um 'Macunaíma' construído nas frestas da relação entre música e movimento

por João Luiz Sampaio 23/09/2022

O Theatro Municipal do Rio de Janeiro promoveu na última quinta-feira a estreia mundial do balé Macunaíma, encomendado ao compositor Ronaldo Miranda e interpretado pelo balé da casa, com coreografia de Carlos Laerte. O espetáculo é resultado da parceria entre o teatro, a Funarte e a UFRJ. E foi interpretado pela orquestra e pelo balé do Municipal.

Macunaíma é baseado no livro de Mário de Andrade sobre esse “herói sem caráter”, publicado em 1936. No mesmo ano, ele lançava o Ensaio sobre a música brasileira, que estabeleceu orientações estéticas para a ideia de uma música nacional. “Qualquer compositor que escrevesse música no molde europeu, se não fosse gênio, seria uma besta.” A música brasileira, anotou, precisava nascer do folclore, da música étnica, de caráter oral. Se a Semana de Arte Moderna de 1922 propunha uma noção de ruptura com a arte do passado, essa ruptura viria de fato nos anos seguintes, tomando forma na obra de diferentes autores. E o ensaio de Mário de Andrade, assim como seu Macunaíma, seriam símbolos bem-acabados dessa nova proposta. 

Antes da apresentação, o professor André Cardoso, que assina o argumento e a concepção geral do espetáculo, fez uma pequena introdução à obra. E a inseriu em um contexto histórico que vale a pena recuperar. O nacionalismo, ele explicou, ganha forma no período romântico, dando origem a escolas nacionais que iam além das três até então hegemônicas, a francesa, a italiana e a alemã. Outra característica do Romantismo era o medievalismo: autores buscaram no passado heróis que pudessem simbolizar esse novo Zeitgeist (Tristão, Parsifal, Guilherme Tell, e assim por diante).

No Brasil, não havia Idade Média, ao menos não nos moldes do contexto europeu, a ser recuperada, então foi no indígena que esse herói ganhou forma. Carlos Gomes, com Peri e Iberê, talvez seja o melhor exemplo desse retorno ao passado filtrado por um presente marcado pela busca de uma noção de identidade. O indígena será também uma figura central no modernismo. Mas a recusa de parâmetros românticos não o transforma em herói, como o fazem os compositores do século XIX. Esse herói é agora muito mais multifacetado, abarcando o monumental tanto quanto o irônico.

Como diz Cardoso, isso está já na forma do livro de Mário de Andrade, que faz da “embrulhada de geografia” um movimento proposital. Assim como o romance passa por diferentes cenários, por diferentes estados, o próprio personagem é uma mistura de referências brasileiras, de diversas lendas, histórias e culturas, que foram recolhidas por Theodor Koch-Grünberg, etnólogo e explorador alemão. Koch-Grünberg participou de expedição pela região amazônica no início do século XX.

Contexto histórico resolvido, o balé. 

A estrutura do espetáculo o divide em quatro quadros. No primeiro, vamos do nascimento de Macunaíma até o episódio em que ele mata durante uma caçada a própria mãe, partindo em viagem com os irmãos Jiguê e Maanape. O segundo quadro narra o encontro dos irmãos, ainda na floresta, com as guerreiras Icamiabas. Macunaíma é o imperador do Mato Virgem, após dominar em um embate Cy, a Mãe do Mato. Os dois se apaixonam, têm um filho. Mas ele é morto quando a Cobra envenena o leite da mãe que, próxima da morte, entrega a Macunaíma um amuleto, Muraquitã.

Segue-se um interlúdio orquestral, ao longo do qual Macunaíma perde o amuleto, que é vendido ao gigante comedor de gente. Decidido a recuperar Muraquitã, ele desce o Rio Araguaia, e vira homem branco. Chega então, no terceiro quadro, a São Paulo, onde leva uma flechada de Piaimã, morre e renasce por meio de um ritual de Maanape. Eles vão para o Rio de Janeiro. Macunaíma pede à candomblezeira Tia Ciata que faça um ritual de vingança contra Piaimã. O herói sem caráter volta então a São Paulo e recupera o amuleto. No quarto e último quadro, os irmãos retornam à floresta. Macunaíma transforma um pé de carambola em princesa. Jiguê, envenenado, torna-se sombra. Macunaíma relembra o passado. Encanta-se e se transforma na Ursa Maior. 

A partitura de Ronaldo Miranda segue um caminho narrativo, marcando de forma muito clara momentos como o clima quase ancestral que acompanha o nascimento de Macunaíma e, mais tarde, o pax-de-deux entre Cy e ele (de um lirismo tocante) ou a chegada a São Paulo e ao Rio de Janeiro. O compositor também trabalha a evocação de personagens por meio de instrumentos (a tuba que representa o gigante, por exemplo) – tudo isso à luz de uma música que evoca elementos da estética nacionalista.

Na coreografia de Carlos Laerte, por sua vez, a linearidade se quebra na relação que ele estabelece entre a história de Macunaíma e episódios da história do país, da Ditadura Militar ao assassinato brutal do indigenista Bruno Pereira, passando por paisagens urbanas, pela mata e pelo litoral, representadas no interessante vídeo de Igor Correa, que potencializa significados sem jamais brigar com a cena. Da mesma forma, na coreografia para os três intérpretes de Macunaíma, há um movimento constante que se volta para dentro de si, do próprio corpo, às vezes frenético, como a simbolizar um constante renascer, que é do personagem, mas também de um país.

Considerando esses dois pontos de partida, pode parecer à primeira vista que há um descompasso entre música e dança, mas aí também é preciso buscar relações fora da linearidade. Pois partitura e coreografia se encontram em frestas que ampliam as possibilidades de leitura: na música, o trabalho hábil de Ronaldo Miranda na combinação de timbres da orquestra (regida com verve por Jésus Figueiredo, ainda que tenha faltado um pouco de contrastes em algumas passagens), com especial atenção aos metais, por exemplo, é um dos elementos a sugerir a estética musical de corte nacionalista, não como discurso, mas como memória – e, como tal, um processo vivo de releitura, de revisão, de imaginação; já na coreografia, há uma abertura em alguns momentos para elementos que se relacionam com a pintura modernista, demarcando a relação com o movimento de 22 como ponto de partida.

Nessas múltiplas possibilidades de leitura, Macunaíma parece ser compreendido como um mito fundador, sendo tão idealizado quanto relativizado, pairando acima do espetáculo menos certezas e mais dúvidas sobre um país que flutua na busca de identidade – na qual a diversidade precisa ter papel fundamental.

[O balé será apresentado ainda nos dias 23, 24 e 25; veja mais detalhes no Roteiro do Site CONCERTO]

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Cena do balé 'Macunaíma', de André Cardoso, Ronaldo Miranda e Carlos Laerte [Divulgação]
Cena do balé 'Macunaíma', de André Cardoso, Ronaldo Miranda e Carlos Laerte [Divulgação]

 

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