Uma noite no museu de grandes novidades

por Leonardo Martinelli 15/06/2019

No fundamental livro O discurso dos sons, o regente Nikolaus Harnoncourt (1929-2016) nos apresenta o conceito de música histórica (ou seja, tudo aquilo que não foi feito em nossa contemporaneidade) e analisa que há duas maneiras de se relacionar com essa música, por meio de dois tipos de execução: "um deles a transporta ao presente; e o outro tenta vê-la com os olhos da época em que foi concebida".

Nesse texto, Harnoncourt tece uma feroz crítica à cultura musical clássica de nosso tempo. Por um lado – e talvez de forma surpreendente para alguém mundialmente conhecido como um dos mais importantes expoentes da interpretação musical historicamente orientada (a popular "música antiga") – ele vê com preocupação a ausência de música contemporânea nas salas de concertos e teatros de ópera. Pelo outro, condena de forma veemente a maneira como a música histórica é interpretada pela maioria das orquestras e grupos musicais, pois ao não levarem em conta uma série de aspectos técnicos e estilísticos concernentes à sua interpretação à época em que foram criadas, oferecem ao público uma dimensão sonora propositalmente equivocada (quando não falseada) da obra.

Toda a carreira de Harnoncourt foi dedicada à superação do equívoco interpretativo sobre a música do passado. Entretanto, ele via com muito bons olhos quando esse mesmo repertório era "transportado" para o presente, pois por mais extravagante que possa ser o resultado sonoro desse "transporte", ele entendia isso como o sinal de uma relação saudável da contemporaneidade com sua história, no qual o passado é processado pelo prisma da modernidade.

Bach fez isso com Vivaldi, Mozart fez isso com Händel, Liszt fez isso com Beethoven. E essa semana ouviu-se pela primeira vez como o compositor paulistano Flo Menezes (1962) transportou para a nossa contemporaneidade a música de Johannes Brahms (1833-1997), mais especificamente, uma seleção de onze de suas canções (lieder) em um concerto da temporada da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP), sob a regência de Valentina Peleggi, com solos vocais de Ludmilla Bauerfeldt (soprano) e Ana Lucia Benedetti (mezzo-soprano).

A maestrina Valentina Peleggi e o compositor Flo Menezes durante ensaio na Sala São Paulo [Divulgação]
A maestrina Valentina Peleggi e o compositor Flo Menezes durante ensaio na Sala São Paulo [Divulgação]

A essa seleção de canções Menezes deu o título de TransLieder (evoco a pertinência do termo "transporte" e seu prefixo "trans-", utilizado por Harnoncourt), pois mais que uma simples orquestração dessas canções, aqui elas foram também ordenadas em uma sequência de forma a conferir um fio dramático ao conjunto, articulado por dois intermezzi (designados pelo compositor como "dobras"), na qual a escritura musical tem seu ápice em termos de transgressão de linguagem e de estilo. Ou seja, há muito do músico brasileiro nesse projeto, e dessa forma, mais que uma mera compilação de canções orquestradas, o conjunto configura-se como uma nova obra de, no mínimo, dois autores: Brahms-Menezes, com participações especiais de Berio, Mahler e R. Strauss.

Claro, a orquestração é um aspecto importante da obra. Mas muito além de apenas colorir timbricamente a partitura em preto-e-branco dessas peças originalmente compostas para piano e voz, o "transporte" (Menezes a chama de transcriação, mas nas notas de programa mostra-se um tanto desconfortável com o termo cunhado por Haroldo de Campos) para o nosso tempo é realizado por meio da exuberância estilística com a qual essa orquestração é feita, não se atendo ao estilo brahmsiano de orquestração.

Se, no geral, muito dessa música teve um gosto à la Mahler, as pitadas de contemporaneidade alçam a peça a uma outra dimensão. Pequenos solos instrumentais – acordeão, violão e saxofone – são colocados de forma cirúrgica, pontual e meticulosa. Nesse contexto, o que esperar de mais uma versão da célebre canção de ninar de Brahms? Uma linda orquestração já seria mais que o suficiente, mas Menezes vai muito além ao evocar a figura materna com os solos de violino que representam a companheira do herói do poema sinfônico Vida de herói, de R. Strauss. Enquanto a singela linha vocal segue o rumo conhecido e previsível ao ouvidos todos, a textura orquestral metamorfoseia a canção em algo único e belamente insólito.

A programação da peça de Menezes acabou por pautar quase todo o concerto sobre a ideia de transporte passado-presente. Uma tremenda ideia, lufada de ar fresco no museu da música que, de forma meio inevitável (e em maior ou menor medida) toda sala de concerto e teatro de ópera acabam por ser nos dias atuais. TransLieder foi, por sua vez, preludiada por um Bach-Berio, uma interessante versão que o compositor italiano Luciano Berio (1925-2003) deu para um dos números que integram a Arte da fuga, de J. S. Bach (1685-1750). Novamente, mais que um mero exercício de colorização instrumental, Berio transgride as barreiras estilísticas e acaba também por colocar muito de si: colocar-se na obra do outro parece ser mesmo a chave do transporte do passado para os tempos modernos.

Não é diferente do que ocorre com a peça que abriu a segunda parte do concerto: um Bach-Busoni. Pianista e compositor italiano, Ferruccio Busoni (1886-1924), famoso por ser um dos fundamentadores da moderna técnica de seu instrumento, o músico foi também autor de vários "transportes", em especial, a partir de peças de Bach, nas quais explorava de forma bastante livre a partitura original, fazendo do piano sua orquestra de um homem só, fonte de exploração de sonoridades.

Não fosse todo esse programa estar embasado sobre esse conceito, não imagino em que outro contexto a transcrição da Chaconne BWV 1004 – obra de colossal dificuldade técnica e grande exigência interpretativa – poderia preludiar um concerto de Franz Liszt (a quem o próprio Busoni deveu muito de sua técnica e musicalidade).

Bem, assim foi feito, e de forma intensa e brilhante pelo pianista Arnaldo Cohen. Teria mesmo sido um belo programa, não fosse a obra que o encerrou – o Concerto para piano e orquestra nº 2 do compositor húngaro – não apenas não ser uma "obra-transporte", mas sobretudo por em si ser uma música histórica longe de suscitar interesse profundamente musical ou algo muito além do virtuosismo técnico que lhe é implícito e seu principal atrativo. Coube ao próprio Cohen reestabelecer a lógica do programa ao tocar como bis uma paráfrase para piano (um dos mais celebrados e populares tipos de "transporte") sobre trechos da ópera O morcego, de Johann Strauss Filho.

Mas ainda assim valeu pelo simbólico: a única peça "normal" do programa – o clássico feito a meio do caminho entre o autêntico e a transgressão – foi a única peça deslocada nesse programa onde a Sala São Paulo, por alguns momentos, se tornou em um museu de grandes novidades.

O programa será repetido neste sábado, dia 15, pela Osesp na Sala São Paulo; clique aqui e veja mais detalhes no Roteiro do Site CONCERTO.

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