Em setembro do ano passado, na Revista CONCERTO, o maestro Gil Jardim contava que, assim que deixasse a direção da Osusp, encerraria sua colaboração de quase quatro décadas como docente da Universidade de São Paulo. Sem as funções universitárias, iria se dedicar a projetos particulares. Pois o primeiro deles estreou nas vésperas desse feriado frio de Corpus Christi. Voos de Villa teve duas apresentações em São Paulo, e segue para o Rio de Janeiro (dia 4 de junho), Brasília (dia 11) e Belo Horizonte (dia 13).
O espetáculo é uma viagem sonora e visual deslumbrante em torno do universo de Villa-Lobos. Para começar, o time de músicos reunido num mesmo palco impressiona: as violinistas Ana de Oliveira e Eliane Tokeshi, o violista Iberê Carvalho, o contrabaixista Neymar Dias (que também toca viola caipira), o flautista Toninho Carrasqueira, os percussionistas Ari Colares e Paulo Santos. Menciono alguns a título de ilustração, uma vez que todos os 20 são profissionais do mais alto gabarito.
Para eles, foram escritos excelentes arranjos que tratam de forma camerística tanto peças sinfônicas de Villa-Lobos quanto canções da música popular brasileira. Aliás, identificar se estamos no domínio da música erudita ou popular é algo que fica em segundo plano; mais do que isso, não faz diferença.
Depois de um prólogo (Revoada, de autoria de Gil Jardim), entramos nas canções villalobianas, com Realejo, Pobre cega, Cantilena, Remeiro de São Francisco, Modinha. A interpretá-las, uma grata surpresa: a cantora Luisa Lacerda, que é também violonista, e cujos excelentes recursos vocais não soam como uma voz plasticamente bonita mas sem vida interior. Pelo contrário, é uma voz quente, de personalidade, transitando de forma sutil da delicadeza a momentos quase rascantes.
Voos de Villa tem potencial de apresentar Villa-Lobos a novas gerações e a novos públicos, ao mesmo tempo em que não decepciona os iniciados e frequentadores de concerto – pelo contrário, surpreende pela criatividade, sem abrir mão da qualidade
As canções são entremeadas pelos movimentos das Bachianas brasileiras nº 4 e dialogam com o cancioneiro brasileiro que, de alguma maneira, tem em sua origem as digitais de Villa-Lobos: assim é que Rosa, de Pixinguinha, antecede Veleiro, por sua vez seguida de Rio Amazonas, de Dori Caymmi.
O ponto alto de Voos de Villa, em minha opinião, é a versão camerística de Uirapuru: o refinado arranjo de Gil Jardim em interpretação de tirar o fôlego dos músicos do Villa Brasil Ensemble – com contrastes, suspensões, e um lindo solo de Eliane Tokeshi ao final da peça. E que boa ideia ir do Uirapuru ao Passaredo, de Chico Buarque, que por sua vez puxa o beija-flor que traz boas-novas em Ai que saudade d’ocê.
Com destaque para as canções e as Bachianas brasileiras, o espetáculo ainda tem O trenzinho do caipira (a Tocata das Bachianas nº 2) aparecendo aqui e ali, e a famosíssima Ária das Bachianas nº 5 em bela versão instrumental, com a melodia vocal passando por diferentes instrumentos.
Há uma transição bem pensada entre uma música e outra, o que reforça a ideia de um espetáculo uno e orgânico – mesmo assim, no dia em que fui, o público irrompeu em palmas em dois momentos antes do final. Tal organicidade, além do encadeamento das peças, passa pelo espetáculo como um todo: a iluminação e cenografia (a cargo de Anna Turra); as imagens em vídeo (concepção de Juuar), com paisagens e personagens do Brasil misturadas a criações abstratas, que não competem com a música e tampouco são ornamentos dispensáveis; e aqui e ali sons pré-gravados de pássaros, ruídos e a voz do próprio Villa-Lobos (o projeto sonoro é de André Magalhães).
Só com música, sem uma narrativa dramática, Voos de Villa tem potencial de apresentar Villa-Lobos a novas gerações e a novos públicos, ao mesmo tempo em que não decepciona os iniciados e frequentadores de concerto – pelo contrário, surpreende pela criatividade, sem abrir mão da qualidade. Há, claro, uma narrativa, musical e afetiva, que em pouco mais de uma hora busca construir uma bela imagem do Brasil.
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