O pianista russo Kirill Gerstein é conhecido dos frequentadores da Sala São Paulo. Em 2022, solou ao lado da Osesp e Thierry Fischer o Concerto para piano e orquestra do compositor inglês Thomas Adès. Era a estreia latino-americana de uma obra que Gerstein encomendou a Adès e estreou mundialmente em 2019.
Detalhe: quando recebeu um expressivo prêmio em dinheiro, o Gilmore Artist Award, usou-o para encomendar obras a compositores variados, como Timo Andres, Chick Corea, Oliver Knusssen, Brad Mehldau e Thomas Adès.
Num artigo para o New York Times, em 2015, a propósito dos 70 anos do pianista romeno Radu Lupu, ele escreveu que “à medida que Lupu toca a experiência dos compositores, anteriormente codificada em sons e preservada no papel, parece reviver do congelamento profundo da notação. Acho edificante simplesmente constatar que, numa época em que tantos músicos se sentem compelidos a passar grande parte do seu tempo envolvidos nas redes sociais e na autopromoção, existem ilhas como Radu Lupu, que se concentra inteiramente na sua música, e é reconhecido por isso”.
Lupu é o ideal que ele procura emular. Toda a sua carreira está cheia de comportamentos diferenciados em relação aos pianistas convencionais. Sua última e notável aventura é apenas mais uma comprovação deste comportamento que deveria ser mais replicado na vida musical do planeta.
Em mais de duas horas de música, o álbum Debussy/Komitas: música em tempo de guerra (Myrios) é um assunto sem dúvida adequado aos dias que vivemos. Gerstein utiliza dois eventos trágicos de pouco mais de um século atrás para acordarmos da letargia com a qual convivemos hoje com duas guerras simultâneas, tão sangrentas quanto o genocídio armênio de 1915 e a Primeira Guerra Mundial.
Tudo nele foi cuidadosamente pensado e transformado em arte. Até o lançamento do álbum (ou sua subida para as plataformas de streaming), que o pianista quis que acontecesse entre o aniversário da morte de Debussy (18/3/1918) e o Dia Memorial do Genocídio Armênio, relembrado a cada dia 24 de abril, desde 1915, quando cerca de 1,5 milhão de armênios foram massacrados, mortos e/ou deportados.
Juntos, lado a lado, dois amigos improváveis, testemunhas e atores dos dois trágicos eventos que se conheceram em Paris: o armênio Komitas Vardapet (1869-1935), pioneiro da etnomusicologia e reverenciado como o fundador da escola nacional armênia de música; e Claude Debussy (1862-1918), compositor seminal sobretudo nas duas primeiras décadas do século XX.
O francês tinha profunda admiração pela música de Komitas. Ambos foram profundamente afetados pela implosão dos seus mundos: Komitas pelo Genocídio Arménio; Debussy, pela Primeira Guerra Mundial. A música destes dois compositores possui um estreito alinhamento emocional. Para muitos, Komitas é terra incógnita, mas, para aqueles que já estão familiarizados com o seu trabalho, a sua memória arde mais intensamente do que nunca. Palavras de Gerstein, um músico que é fascinado pelo poder da música de refletir uma narrativa e de conectar musicalmente o mundo do passado ao nosso presente.
Se conhecemos muito bem a história e as obras de Debussy, o mesmo não acontece com Komitas. Nascido em 1869, passou seus anos de formação transcrevendo e preservando canções rurais armênias e publicou sua primeira edição – uma coleção original de canções folclóricas curdas – em 1903. Em Paris, para onde viajou em 1906, recebeu elogios de Debussy que, ao ouvir a música Antuni (Sem Teto), é citado como tendo dito: "Se Komitas tivesse escrito apenas Antuni, isso por si só teria sido suficiente para ele ser considerado um grande artista".
Não por acaso, naqueles duríssimos anos Debussy também pensou nos “sem-teto”, como o amigo armênio. Ele compôs música cujos ganhos foram destinados ao esforço de guerra. Foi solidário com seu país e escancarou a hostilidade com os alemães e também em relação à música alemã. Sua derradeira canção é O natal das crianças que não têm mais casa. Outras obras do período de guerra para piano solo estão presentes: Page d’album pour piano pour l’oeuvre du “vêtement du bless, Berceuse héroïque pour rendre hommage à S.M. le roi Albert Ier de Belgique et à ses soldats, Élégie from Pages inédites sur la Femme et la Guerre, L. 138, Les Soirs illuminés par l’ardeur du charbon, L. 150. Além da mais conhecida e tocada, Au lieutenant Jacques Charlot tué à l'ennemi en 1915, le 3 mars (Lent. Sombre), a segunda das três peças para dois pianos de En blanc et noir, ladeada entre duas peças dedicadas a dois de seus grandes amigos de seus anos finais, Stravinsky e Koussevitzky.
Debussy morreu em 1918, mas Komitas passou seus últimos vinte anos de vida em uma clínica psiquiátrica.
Além do piano solo, Kirill Gerstein é acompanhado pela soprano arménia Ruzan Mantashyan e pelos pianistas Thomas Adès – sim, o compositor citado no início deste texto – e Katia Skanavi numa seleta de obras para piano solo, voz e piano, piano a quatro mãos e dois pianos. Assim, Gerstein combina os 12 Estudos de Debussy de 1915 com as Danças armênias para piano de Komitas, compostas no ano seguinte.
As execuções de En Blanc et Noir de Gerstein e Adès aos pianos, assim como das Seis epígrafes antigas (única obra composta por Debussy no fatídico ano de 1914), são de primeiríssima ordem, assim como a dos dois livros dos Estudos. Mas quero chamar a atenção de vocês para Komitas, tão pouco conhecido.
Mas quero chamar a atenção para as obras de Komitas. Não deixe de ouvir as Sete danças armênias e as Seis canções armênias (que incluem Antuni) com Gerstein e a excelente Ruzan Mantashyan.
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