Duas óperas filmadas em locação. Dois personagens marcados por traumas. Dois olhares sobre a história. Dois projetos dedicados a pensar a ópera fora dos palcos.
A primeira é La compuerta nº 12, de Miguel Farías, estreada na semana passada, uma parceria da Ópera Latinoamérica (OLA) com o Teatro Municipal de Santiago.
A segunda, The west is a land of infinite possibilities, um curta-metragem criado pela Ópera de Los Angeles a partir de trecho de Proving Up, ópera de Missy Mazzoli estreada em 2018.
***
La Compuerta nº 12 é baseada no conto do escritor realista chileno Baldomero Lillo (1867-1923). O texto, curto e violento, narra a história do menino Pablo, que aos oito anos de idade é levado pelo pai para trabalhar nas minas de carvão. É uma possibilidade angustiante. Mas não há outra. Para ele, em meio à realidade da fome, é hora de seguir os passos do pai e iniciar uma vida adulta de sofrimentos e exaustão.
Nas análises do conto, chama atenção o modo como Lillo não nomeia, com exceção de Pablo, os demais meninos que trabalham na mina ou lá morreram, jovens demais para o trabalho. Seria uma forma de extrair qualquer traço de individualidade de vidas definidas, no final das contas, pelo trabalho que as consome. Existência sem sentido, das quais se pode abrir mão. A única coisa que as define é a crueldade do trabalho.
Mas na ópera de Miguel Farías, Pablo já é um adulto. Narrar sua história é devolver ao personagem sua individualidade. E tentar entender o impacto que a experiência da infância teve em sua vida. O compositor, nome importante da música chilena, com trabalhos desenvolvidos no Ircam, em Paris, cria, assim, um monólogo de cerca de quarenta minutos, onde a voz do barítono é acompanhada por um pequeno conjunto formado por clarinete, viola e sintetizadores.
Pablo tornou-se um artista plástico, que usa o carvão como ferramenta para criar. Em seu ateliê, durante o isolamento da pandemia, acorda de um pesadelo, relembrando que precisa entregar urgentemente alguns trabalhos. Busca então alguns desenhos antigos e encontra outros, feitos pela mãe, o que o leva de volta à infância e às memórias do dia em que o pai o levou pela primeira vez à mina de carvão.
Farias é autor também do libreto, que, em um fluxo contínuo, articula três vozes distintas: a do narrador, que abre a ópera, contextualizando no presente a história; a do pai, com falas extraídas do conto; e a de Pablo, formada da união de pedaços do texto de Baldomero Lillo com trechos originais escritos pelo compositor.
Esse é o resumo da história e da estrutura, talvez importante quando se aborda uma nova obra. Mais importante, porém, é o modo como o compositor preenche e ressignifica o conto original com uma música angulosa, que parece não se fixar em ponto algum, como a fazer referência a um caos que mistura lembranças, fantasias, dores, e é mais forte do que a capacidade de olhar objetivamente para o passado e o presente.
Há opções interessantes. A mãe, que no conto surge apenas no grito do menino deixado sozinho na mina, ganha protagonismo na ópera. A mulher que retrata em seus desenhos o sofrimento do filho levado ao trabalho forçado é uma mulher que lida com a realidade por meio da arte, estabelecendo com o filho adulto, também um artista, uma relação forte, construída por meio do sensível. E que contrasta com um pai que, na lembrança do filho, é quase fantasmagórico – a música nos sugere, por meio dos climas que constrói, que para o Pablo de oito anos assusta mais a ação de um pai que o leva até a mina, até o subterrâneo do fim da infância, do que o trabalho em si.
Esse é um aspecto interessante na narrativa musical de Farías: a forma como parece recusar o linear em busca de um sentido mais amplo. Quando deixa Pablo sozinho para trabalhar, o pai o avisa que voltará de tempo em tempo para vê-lo. Mas o gesto de carinho e preocupação paternal, o único em toda a história, dói mais no menino do que o aviso de que ficará sozinho. Não é por acaso. Com a realidade do trabalho, é possível lidar: mas o que fazer com a fantasia de um possível retorno do pai, de um possível gesto de atenção, quando tudo nessa relação parece marcado pela brutalidade?
Outro ponto diz respeito à voz do menino. A ópera é dirigida pela cineasta Christine Hucke, que, na edição de vídeo, mistura o cenário do ateliê de Pablo com os desenhos feitos pela mãe. É o olhar triste por ela retratado que dá voz ao personagem de oito anos; e, mesmo quando ele implora para que o pai mude de ideia, para que possa voltar para casa, o faz em silêncio, por escrito, em folhas que ganham a tela. Esse silêncio da criança retoma o conto original pois nos refere a uma dor violenta, mas sem voz.
Há muitas camadas de leitura na história – do drama individual, com forte componente psicanalítico, à questão social, que pretende ser mais do que pano de fundo. Mas a intensidade da narrativa ganharia ainda mais solidez dramática sem a figura do narrador, que dá a esse mergulho na alma da personagem um caráter didático desnecessário.
Da mesma forma, se a música fala o tempo todo, e é responsável por sugerir muitas das nuances da história, ela acaba também jogando o texto, em algumas passagens, a segundo plano, em um caráter fragmentário que pode ser inerente à história narrada, mas nem sempre ajuda na construção de um sentido para a personagem que, mesmo interpretada com páthos por Patricio Sabaté, acaba perdendo força perante a cena e a música. Nada, porém que, faça de La compuerta nº 12 uma obra menos interessante.
***
Em 1862, o presidente americano Abraham Lincoln assinou o Homestead Act com o objetivo de encorajar a migração em direção ao oeste dos Estados Unidos. De acordo com a nova lei, trabalhadores rurais que trabalhassem durante um período de cinco anos em determinado terreno ganhariam a posse da terra. Para isso precisariam, porém, cumprir algumas exigências, como ter pelo menos uma janela de vidro em suas casas.
Foi esse o ponto de partida para o conto da jovem escritora americana Karen Russell, Proving Up, que a compositora Missy Mazzoli transformou em ópera em 2018 ao lado da libretista Royce Vavrek. Mazzoli é um nome em ascensão na cena musical americana: acabou de receber encomenda de uma nova ópera para o Metropolitan de Nova York. E a gravação de Proving Up, lançada no final do ano passado, mostra um domínio interessante na combinação de timbres e na construção de contrastes profundos na narrativa musical. Escrita para doze músicos, a ópera, nas palavras do crítico Zachary Woolfe, “transforma intimidade em claustrofobia”.
O que segue de perto o caráter do texto de Russell. Ela imagina uma família que, no interior do estado de Nebraska, espera a chegada do inspetor responsável por determinar a posse da terra. É uma família fraturada. A mãe sofre em silêncio com a morte das duas filhas, responsabilizando a mudança pela perda; o pai vive às voltas com o alcoolismo; e ao filho, Miles, cabe pegar a janela de vidro, roubada pelo pai, e correr pela região, emprestando-a às demais famílias que também passarão pela inspeção.
Mas, ao fazer isso, ele é tomado por visões das duas irmãs mortas – e de uma figura misteriosa, talvez a Morte em si, talvez o Destino, que o acompanha. Uma das cenas mais marcantes é justamente a final, em que esse personagem interpreta a ária The West is a land of infinite begginings. “Sol, lua, seca, fome! Não há sentido em contar tragédias... O Oeste é uma terra de começos infinitos”, ele canta. Há diferentes maneiras de se ler o título da ária. Ironia com a otimista ideia de recomeço para famílias que, em busca de uma nova vida, encontram apenas sofrimento? Ou falar de começos infinitos é falar também de constantes encerramentos, de morte?
Foi essa ária que a Ópera de Los Angeles selecionou para uma série de curtas-metragens na qual tem trabalhado. Em locação, em meio a uma floresta, vemos Miles atormentado pela imagem das irmãs mortas, assim como tentando escapar da figura misteriosa, abraçado à janela que se torna o espelho de uma imagem em conflito. A direção é interessante nas escolhas que faz – e, ao fim da cena da ópera, aparece a própria compositora que, dando continuidade à narrativa, parece encontrar-se com seus personagens do lado de fora do teatro.
***
La Compuerta nº 12 e The West is a land of infinite begginings se aproximam na temática. Voltam-se ao interior de seus países e, ao fazer isso, adentram também o mundo interno de personagens que lutam para viver, confrontados a todo instante pela presença da morte. São obras fortes, claustrofóbicas, como o tempo em que vivemos.
São também experimentos em tempos de pandemia, uma maneira de manter a ópera presente quando, para muitos teatros, ainda parece incerta a possibilidade de voltar a produzir títulos como antes. Uso o termo “presente” de propósito, para não falar “viva”. Pois não há notícia a respeito da morte da ópera. Apenas a certeza de que, no momento em que adentramos o segundo ano da pandemia, será preciso encontrar formas, no palco ou fora dele, de seguir produzindo. Maneiras existem, como nos mostraram trabalhos recentes do Theatro São Pedro ou da Sinfônica de Guarulhos.
Não pode é faltar vontade. E imaginação.
'La Compuerta nº 12' pode ser vista até o dia 31 de janeiro (clique aqui); 'The West is a land of infinite begginings' está disponível até o dia 29 de janeiro (clique aqui).
Leia mais
Notícias Com novas regras de isolamento, Osesp altera horário de concertos
Noticias Filarmônica de Minas Gerais abre série de verão com serenatas
Notícias Filme do Fórum Econômico de Davos reúne músicos de todo o mundo
Notícias Metropolitan Opera cria cargo dedicado a promover a diversidade
Notícias Duo Santoro comemora 30 anos com concerto digital
É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.
Comentários
Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.