Duas vozes

por João Luiz Sampaio 24/02/2022

Wotan está tão feliz quanto um Deus pode ser. No início do segundo ato de A valquíria, de Wagner, seu plano de recuperar o anel, aquele que dá poder absoluto a quem o possui, está caminhando bem. Sendo Deus, ele não pode desobedecer às leis e roubar ele próprio o anel; ou abdicar do amor, condição para possuí-lo. Mas deu um jeito de fabricar um herói, Siegmund, para dar cabo da tarefa.

A felicidade não dura muito. Chega Fricka, sua esposa, deusa da fertilidade, do amor, da união, protetora da família. Ofendida com as traições de Wotan, e com o fato de que Siegmund, ao fugir com a irmã Sieglinde, botou fim a seu casamento com Hunding (além de dar início a uma relação incestuosa), ela exige do marido que coloque ordem na situação. Ele se recusa. E Fricka então mostra o quão absurdo é seu plano.

Siegmund, como filho do Deus, será sempre representação de sua vontade – e o seu desrespeito às leis resvala, portanto, no próprio Wotan que, como Deus, precisa cumprir as regras pois elas justificam sua divindade.

A cena é uma das mais interessantes do Anel. Wagner coloca no palco dois deuses contraditórios e humanos. Fricka defende a lei e, traída, sente prazer ao ridicularizar o plano de Wotan, que, por sua vez, vai da arrogância à percepção de sua própria fragilidade e falibilidade, dando-se conta do início do ocaso do reino dos deuses.

Em 1966, Josephine Veasey gravou o papel de Fricka com o maestro Herbert von Karajan e a Filarmônica de Berlim, quatro anos depois de Christa Ludwig cantar o papel no registro de Georg Solti com a Filarmônica de Viena.

Quem considera Ludwig a maior intérprete do papel na segunda metade do século XX tem boas razões para isso. Mas a Fricka de Veasey não merece ser descartada de pronto.

Ludwig entra em cena sinuosa, a voz dando saltos vertiginosos do grave para o agudo. Sua Fricka vai se tornado mais e mais raivosa e irônica, ridicularizando o Wotan de Hans Hotter, derrotado sem a menor chance de reação.

Veasey, não. É uma Fricka rígida, incapaz de qualquer prazer ou senso de humor. Parece reconhecer naquele momento a chance, sim, de se vingar de Wotan, mas está consciente de que o ocaso do Deus é, no final das contas, o seu próprio. O caminho da divindade está traçado. E, na resignação da Fricka de Veasey perante o fracasso de Wotan em proteger a raça dos deuses, há algo de verdadeiramente assustador.

 

Veasey morreu ontem, terça-feira, dia 23 de fevereiro, aos 91 anos. Deixou uma discografia pequena, mas relevante. Nela, há algumas curiosidades, como uma Adalgisa na Norma de Bellini, registro ao vivo da época em que se achava normal um cantor como Jon Vickers cantar um papel do bel canto como Pollione (vulgos anos 1970). Mas o mais interessante está nas gravações que fez da música de Hector Berlioz. 

O maestro inglês Colin Davis brincou certa vez que a música do compositor só entra na França pela alfândega. Poderia ter dito ainda que o caminho preferencial incluía a travessia do Canal da Mancha. Pois foi na Inglaterra, e por conta de Davis, que grandes obras de Berlioz começaram a ser resgatadas em toda a importância que têm. E Veasey fez parte importante desse processo.

Ela participou da gravação, em 1970, de Les Troyens, em que sua Dido é exemplo de intensidade nada grosseira, atenta às palavras e ao frescor da música em cenas como o dueto com Enéas no quarto ato. Três anos depois, Veasey gravou A danação de Fausto ao lado do tenor Nicolai Gedda, como uma Marguerite repleta de inocência e lirismo. Quase vinte anos depois, foi a vez de Béatrice e Bénédict. E de um registro envolvente da canção Le Spectre de la rose, segunda do ciclo As noites de verão, que Colin Davis gravou, ao contrário do que se tornou costume, com um cantor para cada canção.

 

Também no dia 23, com 92 anos, morreu a soprano italiana Antonietta Stella, grande intérprete de óperas de Giuseppe Verdi e Giacomo Puccini.

Ela nasceu em Perugia em 1930 e, aos 20 anos, fez sua estreia em Roma, cantando em Il Trovatore, de Verdi. O auge de sua carreira se deu na segunda metade dos anos 1950 e na década de 1960 – mesmo período em que a ópera italiana se dividia entre Maria Callas e Renata Tebaldi. Mas, seja em Milão ou em Nova York, ela era presença da mesma forma constante. Sua carreira no Metropolitan só foi interrompida quando cancelou a participação em uma turnê, alegando problemas de saúde, e no mesmo período correu para Milão cantar no Scala. Já no Scala, anos depois, abandonou uma produção de La fanciulla del West, de Puccini, por desentendimentos com o tenor Franco Corelli (provavelmente, conhecendo seu histórico, o culpado no caso). 

Não era uma cantora de repertório particularmente grande. Em Verdi, sua Leonora em Il Trovatore, com Tulio Serafin (1963) é parada obrigatória, assim como a Amelia de Um baile de máscaras – aqui, o problema é seu par romântico, o tenor Gianni Poggi. Aliás, Antonieta Stella não teve sorte com seus tenores. Se, por um lado, houve Bergonzi, o Di Stefano da Aida ou o Corelli de Andrea Chenier, do outro é difícil imaginar o que passou pela cabeça de quem resolveu escalar o terrível Mario Fillipeschi, com todo seu mau gosto musical, para um Don Carlo com Stella, Boris Christtof, Tito Gobbi e Elena Nicolai (na dúvida fique com a gravação com Flaviano Labò).

 

A voz de soprano spinto tinha desenvoltura nos registros mais graves, nos agudos, projeção clara, com foco – críticos que a ouviram ao vivo ressaltavam ainda a boa distribuição do volume e a desenvoltura para passar de um registro a outro (ela não cantou Turandot no palco, mas gravou In questa reggia em um disco com árias de Puccini; vale ouvir para conhecer o alcance da voz). Sobre sua presença em cena, o crítico Howard Taubman, do New York Times, fazia em 1956 um particular elogio após uma Aida no Metropolitan: ela claramente aposta no exagero, escreveu, mas ao menos dá para perceber que sabe bem do que se tratam as cenas que está cantando.

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Antonietta Stella e Josephine Veasey [Reprodução]
Antonieta Stella e Josephine Veasey [Reprodução]

 

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