No Rio de Janeiro, um ‘Oniéguin’ de resistência

Quando todo o ambiente político-social conspira contra a cultura, os equipamentos que se obstinam em continuar produzindo convertem-se em verdadeiras trincheiras. Um dos mais aguerridos postos de resistência tem sido o Theatro Municipal do Rio de Janeiro, que, invertendo uma lógica perversa, em que tudo conduzia ao sucateamento, ergue a cabeça e teima em oferecer à população o que pode fazer de melhor: óperas.

Como se não bastasse, a brava casa carioca não se rende à mesmice dos blockbusters, e vem apostando numa programação variada e criativa. Assim, apesar do difícil momento financeiro que vive, resolveu, após uma ausência de três décadas, novamente apresentar Ievguêni Oniéguin, de Tchaikóvski, inspirada no romance em versos homônimos de Púchkin – cujos 220 anos de nascimento a produção homenageou, incluindo uma palestra gratuita de um dos decanos da tradução de literatura russa no Brasil, Paulo Bezerra.

Infelizmente, na récita a que compareci, no dia 28, o público não se fez tão presente quanto seria de se esperar. Seria medo dos fonemas eslavos, da chuva torrencial que castigou a Cidade Maravilhosa justo nesse dia, ou consequência da crise econômica que se abate sobre nosso país? Não sei explicar – apenas lamentar.

Ievguêni Oniéguin

Para um elenco 100% brasileiro, cantar Oniéguin em russo constitui desafio considerável e, em que pese um ou outro tropeço pontual, deve ser louvado o empenho com que os artistas encararam a empreitada. Talvez a nota dissoante, nesse aspecto, tenha sido o tenor Eric Herrero, que, além de se desencontrar da orquestra em sua primeira ária (Ia liubliú vas), “enriqueceu” sistematicamente o libreto com palavras jamais registradas em qualquer dicionário do idioma eslavo. 

Justiça seja feita, contudo: em sua grande ária (Kudá, kudá vy udalilis) e no dueto subsequente, que são os trechos mais importantes de seu papel, Herrero encontrou uma vocalidade heroica, e soube comunicar, se não os versos de Púchkin, ao menos o sentido de drama com que a música de Tchaikóvski os revestiu.

Tendo iniciado a carreira como ágil intérprete da escrita floreada do bel canto, a mezzo Luisa Francesconi vem migrando, nos últimos anos, para papéis mais pesados, e adonou-se completamente do de Olga, cantado de forma idiomática e convincente. 

No papel-título, o barítono Homero Velho (que havia encantado os paulistanos na ópera Sonho de Uma Noite de Verão, de Britten, no Theatro São Pedro, em 2018) confirmou seu amadurecimento cênico e vocal, e foi um Oniéguin de autoridade.

Cena de Oniéguin [Divulgação]
Cena de Oniéguin [Divulgação]

Naquele que talvez seja seu mais célebre de texto de não-ficção, Fiódor Dostoiévski defende que o romance de Púchkin não deveria se chamar Ievguêni Oniéguin, mas sim Tatiana – pois é a protagonista feminina quem apresenta o mais aprofundado desenvolvimento psicológico. 

Tchaikóvski possivelmente concordava com o autor de Os Irmãos Karamázov; começou a composição de sua ópera pela Cena da Carta (o coração musical da partitura), e fez dela a personagem mais rica e complexa que coloca em cena.

A soprano Marina Considera, no estágio atual de sua carreira, ainda parece ter uma voz um pouco leve demais para as exigências da parte. Contudo, realizou um minucioso trabalho vocal e de caracterização, superando as dificuldades colocadas pela partitura. Sua Tatiana pode ter sido talvez um pouco mais lírica do que seria de se esperar; mas nem por isso foi menos Tatiana. Dentre os comprimários, não há como não ressaltar a vocalidade robusta da mezzo Andressa Inácio – uma voz volumosa e bem projetada, um luxo para o pequeno papel de Filipevna.

O diretor André Heller-Lopes ambientou a ópera na época em que ela realmente se passa, o século XIX, e lançou mão de um recurso recorrente em suas montagens – um espelho, no qual Oniéguin encara retrospectivamente a consequência de seus atos (a rejeição arrogante do amor de Tatiana). As motivações dos personagens estavam sempre claras, e a dança foi incorporada de forma orgânica à narrativa.

No fosso da orquestra, talvez a melhor surpresa: sob o comando fluente e idiomático de Ira Levin, a Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal soou coesa e cheia de caráter, tornando-se uma protagonista não pouco relevante do drama que se desenrolava no palco. Fiquei imaginando o que essa orquestra não poderá fazer se e quando seus efetivos forem completados, e ela tiver as dimensões que o Municipal merece...

O que foi dito da orquestra pode ser estendido ao espetáculo como um todo. Talvez a maior importância desse Oniéguin seja anunciar aquilo em que o Theatro Municipal do Rio de Janeiro pode se converter. Há, nessa casa, talento, potencial, vontade e inteligência suficientes para que ela assuma o protagonismo que é sua vocação natural. Faltam, ainda, as condições administrativas e financeiras para tanto. Quinto título de uma temporada variada e bem pensada, esse Oniéguin não é um ponto de chegada, mas de partida. A partir de seus resultados – certamente não ideais, mas certamente muito promissores –, vale a pena reivindicar e batalhar pelas condições que o Municipal e seus artistas merecem. A temporada de 2020 ainda não foi anunciada, mas já sei que terei vontade de voltar ao Rio de Janeiro algumas vezes no ano que vem.

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Veja outras fotos da ópera Ievguêni Oniéguin [divulgação]:  

Oneguin

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