Niza de Castro Tank completa hoje 90 anos. E fui ouvir seu O guarani, de Carlos Gomes. Registro do final dos anos 1950, com o maestro Armando Belardi, o tenor Manrico Patassini e o barítono Paulo Fortes. É uma bela introdução à sua trajetória. Afinal, foi com Armando Belardi, na Rádio Gazeta, que tudo começou.
Ouvi mais de uma vez de D. Niza contar a história de como chegou em 1954 à sede da emissora na rua Cásper Líbero, em São Paulo, acompanhada da amiga Leonor. A soprano tinha como objetivo ser ouvida pelo maestro Belardi. Um risco e tanto. Seu próprio professor, em Campinas, a desaconselhara. Mas ela botou na cabeça que estava pronta. E foi. Não tinha hora marcada, mas deu um jeito de entrar na sala do regente.
Quase foi expulsa. Não havia vaga para sopranos na companhia da rádio. Mas pediu ao menos que o maestro a ouvisse e lhe desse algumas orientações. Cantou um pouco. E, ao final do encontro, estava contratada.
Três anos depois, os jornais de São Paulo começam a registrar sua presença na cena musical brasileira. Em 1958, por exemplo, José da Veiga Oliveira falou, em texto no Estadão, da “voz magnífica de soprano ligeiro”, de sua capacidade “de emitir com absoluta naturalidade os agudos, os delicados floreios e trinados, no estilo operístico que lhe é como uma segunda natureza”.
Ele comentava justamente sua gravação de O guarani. E aqui entra outro sentido histórico de seu Guarani: Carlos Gomes foi, ao longo de sua carreira, uma verdadeira missão. Ela nem sabe dizer quantas foram as récitas que interpretou da ópera. Muitas, com certeza. Além do registro de 1958, há no YouTube uma gravação ao vivo dos anos 1980 da ópera completa em Campinas, com Benito Juarez; e um dueto do primeiro ato em Campos do Jordão, com Benito Maresca (que tenor!), Eleazar de Carvalho.
Fora do palco, dona Niza realizou trabalho igualmente importante, divulgando o compositor e editando suas canções, publicadas em livro pela Editora Algol de Heraldo Marin, acompanhadas de discos nos quais cantores, muitos deles seus alunos, as interpretam.
É um legado notável. Mas a carreira seguiu também outros caminhos. Procurei, procurei, procurei e encontrei aqui em casa uma preciosidade: final dos anos 1950, Theatro Municipal de São Paulo, a gravação de duas récitas de Rigoletto, de Verdi.
Em ambas, o papel-título era do barítono Paulo Fortes; em uma delas, a Gilda de dona Niza; na outra, a Gilda de Neyde Thomas. Não sei ao certo se havia rivalidade aberta entre as duas (a soprano Diva Pieranti me disse certa vez que havia, e se colocava ainda como um terceiro elemento nesse tipo de disputa tão característica do mundo da ópera). Mas as gravações são preciosidades históricas.
Que barítono foi Paulo Fortes; que sopranos notáveis. Dona Niza com o cuidado com com o fraseado, sempre musical, sempre com aquela facilidade e precisão nos agudos. Tudo a serviço de um sentido de interpretação muito claro. E o mesmo vale para os trechos que restaram de sua Lakmé; de sua Violeta, na Traviata; ou mesmo da Rainha da Noite, da Flauta mágica.
Dona Niza ficou cinco anos no elenco da Rádio Gazeta, até que a companhia foi desfeita. Ali, conta, brotou a sua sensibilidade artística e sua carreira desabrochou. Cantou em diferentes cidades, foi para fora do Brasil, sempre retornando ao país. Nunca se acostumou com a ideia de viver fora. E, com o passar do tempo, foi criando cada vez mais raízes, como quando recebeu de Benito Juarez o convite para dar aulas de canto na Unicamp, onde tornou-se também doutora em Artes.
Lembro-me de, algumas vezes, em sua casa em Campinas, insistir para ouvir suas gravações ao seu lado. Ela disfarçava, dizia que nem tinha nada guardado. Não imagino que não saiba a enorme contribuição que deu à música brasileira, mas o bom-humor e a capacidade de rir de si mesma são qualidades marcantes de sua personalidade, assim como a carga teatral com que costuma contar suas histórias. Também adora piadas. Entre as muitas, aquela em que lhe perguntavam se tinha conhecido Carlos Gomes. Quase, diz.
Antes de me sentar para escrever, recuperei da estante sua biografia, escrita por Sara Lopes para a coleção Aplauso, da Imprensa Oficial. Ao abrir o livro, caíram duas fotos da mezzo soprano Maria Henriques, que ela me ofereceu após uma entrevista já se vão quase quinze anos. Não sei se as duas chegaram a cantar juntas. Na imaginação, ao menos, teria sido uma noite memorável no teatro. Como foram tantas as da carreira de dona Niza, que entrou para a história pela qualidade do canto e também como símbolo de um outro momento da ópera no país. Nada de saudosismo. É preciso olhar para o presente, construir um futuro. Mas fazer isso sem jamais deixar de homenagear a grandeza daqueles que vieram antes de nós.
Parabéns, dona Niza!
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