Festival Amazonas de Ópera: “economia criativa” e arte

por Nelson Rubens Kunze 06/06/2019

Não é apenas na produção de títulos líricos que Manaus estabelece referências em nosso país. No dia 26 de maio passado, durante o último fim de semana da 22ª edição do Festival Amazonas de Ópera, Manaus sediou o encontro “Os teatros de ópera e a economia criativa da América Latina”, com o intuito de promover o gênero de uma forma mais articulada e eficiente em nossa região. A iniciativa foi de Flavia Furtado, diretora executiva do FAO, que há alguns anos tem atuado para dinamizar a produção cultural. 

É verdade que esse esforço vem também de outras frentes e não é de hoje – na primeira década do século, a Funarte promoveu um encontro em Belo Horizonte que também tinha a intenção de adequar os interesses e juntar os esforços dos diferentes produtores e teatros. E, em 2015, o Instituto Pensarte em parceria com a Revista CONCERTO promoveu um seminário em São Paulo com o título “Ópera no Brasil”, que, entre outros temas, abordou a questão da operação, da cooperação e da busca por novos públicos.
 
O encontro em Manaus, contudo, teve alguns pontos diferenciais: primeiro, pois abordou especificamente um tema dos mais relevantes, até então pouco explorado, que é o da “economia criativa” – ou seja, como a ópera impulsiona toda uma cadeia produtiva que, compreendida de forma ampla dentro de um ecossistema macroeconômico, acaba gerando renda e desenvolvimento; segundo, propondo uma visão mais ampla ao incluir no debate a Ópera Latinoamérica (OLA), agremiação dos teatros líricos do subcontinente; e, terceiro, e talvez o mais importante, ao viabilizar um ato concreto para a promoção da arte lírica no Brasil. É que Flavia Furtado logrou a façanha de levar ao Amazonas o secretário especial da Cultura (equivalente ao que outrora era o ministro da Cultura) Henrique Medeiros Pires, que assinou um acordo de colaboração com a OLA, em que o governo brasileiro reconhece o gênero como segmento relevante para a cultura e “se dispõe a colaborar na convergência de esforços para o fomento e intercâmbio de montagens de ópera na região latino-americana”. Com isso, o Brasil torna-se o primeiro país a assinar o acordo, que poderá viabilizar investimentos do BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento no setor de ópera. Na oportunidade, o secretário Henrique Pires fez outro anúncio auspicioso, ao confirmar o investimento de mais de R$ 2 milhões para obras de manutenção do Teatro Amazonas – “não é promessa, é fato, os recursos já estão disponíveis”, afirmou.

Para se ter uma ideia do nível da interlocução, basta dizer que, ao lado do secretário Henrique Pires, participaram do encontro o secretário da Cultura do estado do Amazonas Marcos Apolo Muniz, o diretor artístico do FAO maestro Luiz Fernando Malheiro, a chefe do Departamento de Economia Criativa do BID Trinidad Zaldivar; a diretora administrativa da Ópera Latinoamérica Paulina Ricciardi; René Coronado, diretor executivo da Ópera da Colômbia; o presidente da Academia Brasileira de Música João Guilherme Ripper; além da própria Flavia Furtado. Também convidados, os secretários de Cultura e Economia Criativa do estado de São Paulo, Sérgio Sá Leitão, e do estado do Rio de Janeiro, Ruan Fernandes Lira, não compareceram.

Após as exposições, todas muito concretas com dados e números que comprovam o impacto econômico e social que a produção de óperas traz consigo – e estávamos em uma cidade, Manaus, que é prova viva disso –, seguiu-se um debate do qual emergiram algumas ideias para a facilitação do intercâmbio de produções na região: a busca por uma articulação maior entre os produtores; um levantamento dos recursos e das características técnicas dos diversos teatros de ópera no Brasil; e, talvez o mais importante, a necessidade de criação de editais para o financiamento do transporte de produções entre os teatros.

Teatro Amazonas [Revista CONCERTO]
Teatro Amazonas [Revista CONCERTO]

Alma, de Cláudio Santoro

Após o encontro de economia criativa, seguimos para a estreia de Alma, de Claudio Santoro, terceira montagem do Festival Amazonas de Ópera 2019 (antes houve Maria Stuarda de Donizetti e Tosca de Puccini). 

Alma é a única ópera escrita por Santoro, compositor nascido em Manaus, há exatamente 100 anos, e falecido em Brasília, em 1989. (Quem leu a matéria de João Luiz Sampaio na Revista CONCERTO de março conhece um pouco da trajetória e da vasta obra desse grande artista.) Alma é baseada no romance homônimo de Oswald de Andrade, que conta, em um estilo direto e fragmentado – mas poético, de rico vocabulário e imagens figuradas –. a história conflituosa de Alma, que envolve amor, submissão, poder, obsessão e dependência, A adaptação do libreto foi feita pelo próprio Santoro, que estruturou a ópera em 4 atos.

E a ópera é muito boa! Apesar de fazer uso de diversas linguagens musicais – logo na abertura soa um romântico tema de amor – a escrita é consistente, em que os acontecimentos sobre o palco são intercalados por partes narrativas do coro. E gostei muito da inteligente encenação, dirigida por Julianna Santos com cenografia de Giorgia Massetani, e protagonizada pela excelente mezzo-soprano Denise de Freitas, em interpretação espetacular. A ópera, apresentada pela Amazonas Filarmônica, Coral do Amazonas e Corpo de Dança do Amazonas, teve direção musical e regência de Marcelo de Jesus e contou ainda com os solistas Juremir Vieira, Emanuel Conde e Homero Velho. Esta foi a primeira encenação da partitura completa e revisada.

Há mais de duas décadas Manaus é ponto fulcral da ópera no Brasil. Com uma programação criteriosa e diversificada, o Festival Amazonas de Ópera protagonizou algumas das principais produções do gênero nesse período, basta lembrar do memorável Anel de Wagner realizado entre 2002 e 2005 (primeira produção da tetralogia na história do Brasil) e de tantas outras marcantes encenações. E sempre com grande sucesso de público: a secretaria de Cultura do Amazonas acaba de divulgar que o evento de 2019 bateu todos os recordes de bilheteria, com ingressos esgotados nas 11 das 13 récitas, somando mais de 12 mil espectadores.

Com a crise que o Theatro Municipal do Rio de Janeiro enfrenta e a nova orientação “multicultural” do Municipal paulistano, a programação do Festival Amazonas de Ópera ganha relevância ainda maior. Que bom seria se o espírito lírico amazonense inspirasse outras regiões do Brasil...
 
[Nelson Rubens Kunze viajou a Manaus a convite do Festival Amazonas de Ópera.]
 
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