Primo de Ariano Suassuna e citado em obras de Glauber Rocha e Clarice Lispector, Marlos Nobre, que morreu na última segunda-feira, foi não apenas um dos maiores compositores brasileiros de sua geração, como uma das mais destacadas figuras musicais de nosso país na segunda metade do século XX e começo do XXI. Talvez não seja exagero dizer que, em determinado período, seu nome era sinônimo de compositor contemporâneo por aqui. Afinal, quantos tiveram uma obra incluída em uma novela das oito da Globo na época em que o país parava para acompanhar esse tipo de programa de televisão? Ou uma partitura encomendada pelas Olimpíadas?
Consta que seu peculiar prenome era uma combinação dos nomes de seus pais, Maria e Carlos. Marlos entrou no Conservatório Pernambucano de Música aos cinco anos, e reivindicava em sua estética uma síntese das correntes que disputaram a hegemonia da música brasileira ao longo do século XX, pois estudou com os antípodas Camargo Guarnieri e Hans-Joachim Koellreutter. Decisiva foi a passagem pela “Darmstadt sul-americana”, o Instituto Torcuato di Tella, em Buenos Aires, em contato não apenas com Alberto Ginastera, o maior compositor argentino de todos os tempos, mas também com luminares do quilate de Olivier Messiaen, Aaron Copland, Bruno Maderna e Luigi Dallapiccola. Houve também estudos nos EUA com Alexander Goher, Günther Schüller e um certo Leonard Bernstein – e música eletrônica com Wladimir Ussachevsky.
Na dedicatória de seu último romance, 'A Hora da Estrela', Clarice Lispector escreve: 'sobretudo dedico-me às vésperas de hoje e a hoje, ao transparente véu de Debussy, a Marlos Nobre, a Prokófiev, a Carl Orff, a Schönberg'
Na década de 1960, começam a surgir suas obras de maior destaque, mesclando os recursos em voga nas vanguardas de então a um colorido “brasileiro” – embora longe dos padrões folclóricos e populares da música nacionalista. Caso, por exemplo, da cantata Ukrinmakrinkrin (1964), magistralmente empregada por Glauber Rocha no filme O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, de 1969 (veja aqui). Ou de Rhytmetron (1968), uma de suas muitas partituras para percussão, que entrou na trilha sonora da novela Selva de Pedra (1972), de Janete Clair, com Francisco Cuoco e Regina Duarte (veja aqui). No mesmo ano, suas Sonâncias, para piano e percussão (veja aqui), foram executadas nas Olimpíadas de Munique – encomenda do comitê artístico do evento. Na dedicatória de seu último romance, A Hora da Estrela (1977), Clarice Lispector escreve: “sobretudo dedico-me às vésperas de hoje e a hoje, ao transparente véu de Debussy, a Marlos Nobre, a Prokófiev, a Carl Orff, a Schönberg”.
A ascensão foi acompanhada da ocupação de cargos públicos, como a coordenação da Rádio MEC e a direção do Instituto Nacional de Música da Funarte, na década de 1970, além da presidência do International Music Council da Unesco, em Paris, entre 1985 e 1987 e, mais tarde, a direção da Fundação Cultural de Brasília.
E aí começaram as controvérsias que tornaram seu nome “maldito” nas duas últimas décadas do século passado. Embora não lhe negassem as qualidades como compositor, vários de seus colegas não podiam ouvir o nome de Marlos Nobre ou menções à sua obra. Aqui entra um depoimento pessoal: presenciei pelo menos um luminar da composição brasileira retirando-se de um concurso de canto quando anunciou-se que um candidato interpretaria uma canção de Marlos, e as anedotas que ouvi encheriam páginas e páginas. Quando o conheci pessoalmente, em 2007, no Festival Virtuosi, no Recife (edição que homenageou os 80 anos de seu primo Ariano Suassuna, e durante a qual ele tocou seu Frevo nº 2, dedicado ao escritor (veja aqui), Marlos começou a dar sua versão dos fatos antes mesmo que eu lhe fizesse qualquer pergunta.
Lembro-me de que ele mencionou em conversas privadas que estava compondo uma ópera sobre Lampião. Torço para que essa partitura seja localizada e estreada como homenagem póstuma
Mas, nessa época, embora as histórias envolvendo seu nome continuassem a circular, ele já parecia reintegrado ao meio musical brasileiro. Talvez a virada tenha sido em 2004, quando o maestro Roberto Minczuk convidou-o para ser o compositor residente do Festival de Inverno de Campos do Jordão, ocasião na qual ele compôs Kabbalah, partitura orquestral que a Osesp executaria em um dos principais festivais de música do planeta, o BBC Proms, em 2016, e que seria regida na Venezuela por ninguém menos que Gustavo Dudamel (veja aqui). No ano seguinte, veio o VI Prêmio Ibero-Americano Tomás Luis de Victoria, na Espanha.
Marlos caminhava na direção de um estilo mais tonal e “acessível”, e as encomendas voltavam a aparecer. Para a Osesp, veio Sacre du Sacre (veja aqui), uma homenagem ao centenário da Sagração da Primavera, de Stravinsky, em 2013, e um alentado concerto para violoncelo para o saudoso Antonio Meneses, em 2019 (veja aqui).
Músico completo, além de compositor e pianista, Marlos também era maestro. Foi o primeiro brasileiro a reger a Royal Philharmonic Orchestra de Londres, e esteve à frente de formações como a Orchestre de la Suisse Romande, a Filarmônica da ORTF e a Filarmônica do Teatro Colón de Buenos Aires. Em 2013, assumiu a Orquestra Sinfônica do Recife, ajudando a reinserir esse antigo grupo na vida musical nacional e programando obras de autores brasileiros das gerações mais novas.
Lembro-me de que ele mencionou em conversas privadas que estava compondo uma ópera sobre Lampião. Torço para que essa partitura seja localizada e estreada como homenagem póstuma a um criador controverso, porém de talento inegável. Afinal, contendo cerca de 250 itens para variadas formações, do piano solo à orquestra, sua música foi gravada e defendida, por exemplo, pelo Duo Assad, Roberto Szidon, Clélia Iruzun, Eduardo Monteiro, Fabio Zanon e Paulo Abel do Nascimento, dentre muitos outros.
Se atraiu gente desse quilate, alguma qualidade sua obra tinha.
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